Mediante pagamento, o cançonetista Olavo Bilac cantou num comício do Chega e apareceu sorridente numas fotografias ao lado do dr. Ventura. O gesto foi o suficiente para que irrompesse um pequeno escândalo. E o escândalo foi o suficiente para que o sr. Bilac viesse às “redes sociais” admitir o “erro”, negar qualquer associação ao Chega e pedir mil desculpas à humanidade em peso.

É evidente que o sr. Bilac, naturalmente carecido de ganhar o sustento, ficou em pânico. Por um lado, o dinheirinho do espectáculo dá-lhe jeito. Por outro, o dinheirinho dos espectáculos que se arrisca a perder faz-lhe falta. Suponho que, antes do referido evento, a popularidade do sr. Bilac não fosse extraordinária. Após o evento, a popularidade é nula. A julgar pelo ódio que suscitou, será mais provável uma autarquia alentejana patrocinar um concerto de António Calvário do que o sr. Bilac animar uma feira do gado em Valpaços. Embora eu não ouviria o sr. Bilac nem que o Chega (ou uma autarquia alentejana) me pagasse, espero estar enganado e desejo uma carreira próspera ao homem. O problema, de resto, não é esse.

O problema é a quantidade de vigilantes que se uniu de imediato na condenação do sr. Bilac. O problema é a fúria que os vigilantes dedicaram aos pouquíssimos, como o apresentador Manuel Luís Goucha, que defenderam o direito do sr. Bilac cantar onde quiser. O problema é a impressão crescente de que quem não está com “eles” está não só contra “eles” mas será por “eles” aniquilado profissional, social e pessoalmente. O problema é o medo. O problema é o medo se espalhar por toda a parte. O problema é o medo enquanto modo de vida. O problema é que uma vida assim não é vida: é um sintoma inevitável da opressão institucionalizada que o país iniciou em 2015. Não há ditadura sem estes exercícios de ameaça e humilhação, de castigo e arrependimento. O engraçado, se as tragédias dessem para rir, é que as ditaduras avançam a chamar antidemocráticos aos inimigos, com frequência imaginários, no mínimo exacerbados para efeito cénico. É, dizem “eles”, o “novo normal”.

Não tenciono perder muito tempo a falar do Chega. O dr. Ventura, que se notabilizou a defender um clube da bola, tem tanta legitimidade para abolir a corrupção e refundar o regime quanto Linda Lovelace para criticar a pornografia. Além disso, e de uns repelentes laivos “patrióticos”, o oportunismo do dr. Ventura tende a entusiasmar-se e roçar a demência: há tempos, confessou que gostaria mesmo era de castrar fisicamente os pedófilos. Recentemente, jurou proibir as ofensas a juízes e polícias. Agora já se declara orientado por Deus Nosso Senhor, que decerto lhe surgiu num intervalo do Benfica.

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A questão é que o episódio do sr. Bilac, de ascendência africana, e a interferência do sr. Goucha, homossexual, complica um bocado o “nazismo” atribuído ao Chega. As habituais, e simpáticas, referências a Israel também não combinam. Não sendo totalmente improvável que o Chega seja avesso à democracia, a verdade é que não é claro que seja a força de inspiração totalitária que dizem ser. De resto, a esquerda chama “nazi” ao Chega com a exacta facilidade com que chamaria “nazi” ao CDS ou ao PSD, caso o CDS existisse e o PSD fizesse oposição. Porém, admita-se para conveniência de conversa que o Chega realmente adopta ideologias responsáveis por milhões de mortos. Não é precisamente isso que define o PCP e, removido o verniz beato, o BE?

O facto – que convém lembrar semanalmente, se necessário – é que o parlamento português possui dois partidos comunistas, ambos com uma quantidade de deputados muito superior ao Chega e, para o que importa, ambos fervorosos adeptos de regimes sanguinários. É possível que o Chega aprecie regimes assim. É garantido que PCP e BE apreciam regimes assim. E quantos cançonetistas ou aparentados já apresentaram desculpas pela participação em festanças de qualquer dos dois? Se não estou em erro, nenhum. Se não estou em erro, centenas de “artistas” nacionais até retiram regularmente vantagens da conotação com o comunismo, simpatia que desfilam com o orgulho natural de quem se orgulha das chacinas, dos fuzilamentos, das torturas, das prisões e da fome habituais nos lugares onde o comunismo iluminou os povos.

São profissionais? Pois são. Aliás, o sr. Bilac é tão profissional que chegou a actuar na Festa do “Avante!”, sem que à época as virgens se contorcessem de indignação. Não é especialmente grave, ou comprometedor, que sujeitos se deixem contratar pelo “Avante!”, pelo Acampamento de Verão do BE, pelos concertos em prol do Hamas ou por homenagens a Rudolf Hess: o profissionalismo pode ser sinónimo de estupidez. Grave é que, conscientemente, se cantarole e saltite ao ritmo de massacres, comunistas, nazis ou dos psicopatas que calhar. Grave é a quantidade de tontinhos, incluindo na “geração mais informada de sempre”, que de acordo com a vulgata desprezam Hitler e imaginam intenções redentoras nas aplicações terrenas do marxismo.  Grave é não perceber que, ao rejeitar o horror nazi e acarinhar o horror comunista, se legitima o horror todo. Grave é presumir nuances na desumanização do indivíduo em nome de princípios “superiores”. Uma sociedade civilizada não é selectiva nas abominações. A portuguesa, por exemplo a portuguesa, é selectiva. E evidentemente não é civilizada.