Pode ler-se num artigo recente do jornal Público que, e citamos, “na área da justiça o calcanhar de Aquiles está na carência generalizada de oficiais de justiça e de procuradores apontada como causa de atraso de vários processos.”

Não se entende se a afirmação é do jornalista ou de alguém do sindicato dos oficiais de justiça, mas uma coisa é certa: quem faz uma afirmação deste teor empreendeu uma viagem no tempo e regressou aos tribunais da idade média em que o oficial de justiça, então designado por Meirinho, tinha como função executar prisões, fazer citações presenciais, proceder à penhora de bens, etc. Ora desde há muitos anos que estas funções são exercidas pelas polícias, por agentes de execução e pelos próprios advogados que se notificam mutuamente das peças processuais que entregam nos tribunais.

Se acrescentarmos a toda esta redistribuição de encargos, que retirou uma parte significativa de trabalho aos funcionários dos tribunais, a posterior informatização de todo o processo judicial, percebe-se perfeitamente porque é que em 2005 os funcionários judiciais eram segundo o artigo em causa 9200 e em 2021 seriam 6471 a exercerem efectivamente funções nos tribunais.

Se há algo que realmente não se entende é a razão pela qual, tendo grande parte do trabalho antes atribuído aos funcionários de justiça transitado para outras instâncias e entidades, as taxas de justiça continuam invariavelmente a aumentar.

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Outra afirmação que só não será um comentário de mau gosto por quem teve a sorte de nunca frequentar um tribunal, é o seguinte comentário do sindicato dos oficias de justiça: “Somos mal pagos e não somos remunerados pelas horas além do horário normal”. Quanto ao salário não nos cabe comentar obviamente, mas quanto às “horas além do horário normal” o sindicato ou se está a referir a uma secretaria judicial especifica de algum específico tribunal que não refere, ou então, se a afirmação é generalizável, deve referir-se às comarcas de Marte ou de algum outro planeta desconhecido.

A experiência de juízes, procuradores, advogados e cidadãos em geral chamados a tribunal, é que as audiências de julgamento terminam no horário do funcionário judicial, ainda que todos os restantes participantes na sessão estejam dispostos a prolongá-la. A não ser e isso por vezes acontece, que a pedido do magistrado, o funcionário judicial se disponha a fazer o favor de continuar mais 20 ou 30 minutos. Isto é assim que acontece e todos o sabemos.

Quanto ao funcionamento das secretarias é inteiramente igual: fecham rigorosamente no horário. Se após o fecho ao público os funcionários prolongam o horário sem qualquer compensação, isso não podemos saber. Mas sem prejuízo disto, a impressão que nos fica, quando se visita por motivos profissionais uma secretaria judicial no horário de expediente, é a sensação que o ritmo de trabalho não é intenso.

O sindicato dos funcionários de justiça aceita pelo menos que existe uma “elevada taxa de absentismo”, da qual culpa o facto de a média de idade dos funcionários ser acima de 55 anos. Esta afirmação – chamar-lhe uma desculpa seria mais correcto – é surpreendente. O trabalho de um funcionário judicial, tal como o de um magistrado ou de um advogado, é um dos ditos trabalho de “secretária”. Faz-se sentado e só se for por isso que seja prejudicial à saúde. Os funcionários judiciais não são condutores de ambulâncias, operadores de máquinas industriais, pilotos ou enfermeiros de emergência médica e por isso 55 anos de média de idade está absolutamente adequada à produtividade e assiduidade que deveria ser exigida.

Os legítimos interesses corporativos que o sindicato defende não estão em causa, nomeadamente os aspectos salariais, pois nisso faz o seu papel e não se lhe deve pedir que não o faça, agora empurrar para a falta de funcionários judiciais a causa dos problemas dos atrasos da justiça é inteiramente inadequado por redutor.

O atraso das decisões judiciais radica sobretudo e em primeira linha na falta de magistrados face ao número crescente e à complexidade dos processos que lhes são distribuídos. Acresce a isto a falta de assessoria técnica aos juízes, que deveriam ter acesso a um corpo de assessores nas várias matérias que lhes são cometidas para julgamento. Se houvesse vontade de melhorar o sistema judiciário, estas seriam as duas primeiras prioridades na despesa e isto não se afigura controverso entre todos os operadores judiciários.

Claro que há outras medidas, embora quanto a estas não exista consenso. Refiro algumas: impossibilidade de deslocar magistrados para funções não judiciais, sem que em simultâneo se proceda ao preenchimento da vaga que disso resulta; limitação da extensão das peças processuais das partes, dos documentos juntos e no número de testemunhas admissíveis; simplificação e sintetização das sentenças; eliminação de certos actos processuais previstos na lei que só atrasam o curso dos processos; limitação de instâncias de recurso; possibilidade de sessões de julgamento por via electrónica, salvo em processos criminais etc.

Continuamos a ser um país em que temos todos os direitos e garantias na Lei e na Constituição. Isto é no papel. Quando chegamos à realidade, seja na saúde ou na justiça, ou faltam médicos ou faltam juízes. Falta sempre alguma coisa, salvo o prazo para pagar impostos. Quando confrontado com esta situação endémica no nosso país, não me consigo libertar da imagem de um supermercado que visitei na Berlim da RDA em 1980. Era tudo acessível e barato, só que não havia nada nas prateleiras.