Um artigo recente de João Araújo no Observador pode defender ideias muito certas no que diz respeito ao ensino da Matemática. Revela no entanto também outros problemas que quem trabalha na fronteira entre a Física e a Matemática sente quotidianamente: como é difícil a relação entre estas ciências que parecem tão próximas! Com efeito, e com o devido respeito, a afirmação por parte do autor de que “o objeto da Física é a matéria e a energia” é profundamente redutora e deformadora. Se me preocupo com esta afirmação é porque ela é sintomática de como uma grande parte dos matemáticos encara a Física, e sobretudo com as consequências que isso tem não só no ensino de ambas como também na atividade científica.

É mesmo muito discutível que a Física seja uma “ciência de objeto”, como o autor a classifica. Qualquer fenómeno natural deve obedecer às leis da Física, pelo que em sentido lato o objeto da Física é o estudo de todo e qualquer fenómeno da natureza; é o estudo do universo, em todas as suas escalas. Se Hilbert afirma que as afirmações dos matemáticos “terão de se aplicar tanto a pontos, linhas e planos como a mesas, cadeiras e canecas de cerveja”, as leis da Física terão que ser válidas nas maiores e nas mais ínfimas escalas, das galáxias às partículas elementares.

Foi por se libertar do contexto e procurar uma regra geral que, no século XVII, Newton enunciou que a gravitação era válida tanto para os corpos no planeta Terra como na Mecânica celeste, alterando profundamente a forma como até então se encarava o Universo, iniciando uma tendência de unificação e generalização que teria continuidade, no século XIX, com Maxwell (na eletricidade, no magnetismo e na ótica) e, no século XX, no modelo padrão das interações fundamentais, unificando o eletromagnetismo e as interações nucleares fraca e forte. Esse espírito unificador permanece na busca de uma teoria mais geral que inclua também a gravitação, como é o caso das supercordas, mas não está presente somente nas interações elementares. O funcional gerador da Teoria Quântica de Campo, usado na física das partículas elementares, corresponde à função de partição em Física Estatística, utilizada na física dos sistemas complexos. Não se trata somente de as equações serem as mesmas: os métodos são também os mesmos.

Quando os físicos portugueses Vítor Cardoso e Óscar Dias explicaram a instabilidade gravitacional de um tipo de buraco negro (a corda negra), um problema de Relatividade Geral, aplicaram os mesmos métodos usados em Mecânica dos Fluidos para explicar a instabilidade de um fluido em queda e a sua tendência para decompor-se em gotas (a instabilidade de Rayleigh-Plateau). Quando o físico argentino Juan Maldacena propôs uma correspondência entre teorias de cordas formuladas num espaço anti-de Sitter e teorias quânticas de campo formuladas na fronteira deste espaço (a célebre correspondência AdS/CFT), tinha em mente uma formulação não perturbativa da teoria de cordas. Mas esta sua proposta tem sido aplicada com sucesso para fazer cálculos e obter resultados que até então não se sabia como obter em sistemas fortemente acoplados, na Física da Matéria Condensada e na Cromodinâmica Quântica.

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A Física não procura a abstração do seu objeto-universo, como a Matemática, mas visa sempre a descoberta de leis gerais da natureza, e não somente um objeto específico.

Toda a argumentação que o autor apresenta relativamente à Matemática pode ser apresentada em relação à Física, que historicamente é a única ciência natural que contribuiu (e continua a contribuir) diretamente para o progresso da Matemática. Sendo duas ciências bem diferentes (a Matemática não inclui a experimentação; a Física não inclui a abstração), têm caminhado lado a lado. É por isso com pena que se verifica que para grande parte dos membros destas duas grandes comunidades, os membros da outra comunidade são estranhos – quando não muitos dos membros da mesma comunidade. Há um fechamento de físicos e matemáticos dentro do seu próprio grupo de interesses, de que ninguém sai a ganhar.

Da parte da Matemática, creio que este fechamento é intrínseco e resulta da sua tendência para a abstração. Tem como consequência afirmações como a citada “o objeto da Física é a matéria e a energia” (como alguém habituado a trabalhar com físicos e matemáticos, já ouvi outras piores). Da parte da Física, o fechamento em relação à Matemática é mais surpreendente, uma vez que, por definição, e dado o seu caráter, teria obrigação de ser uma ciência mais aberta.

Mas não duvido nada de que haja físicos que se contentem com a definição (muito pobre) de João Araújo no seu artigo – é provável que haja muitos que se revejam nela. A mais provável razão do afastamento parece-me ser a maior ligação dos físicos à indústria, em projetos de Física Aplicada. A “aprendizagem em contexto” é típica da engenharia e dos ramos mais aplicados do saber, onde se quer sobretudo resolver problemas. Não é a mais indicada para aprender ciência, seja Matemática ou Física, Biologia ou Química. Parece-me por isso pouco adequado que o autor distinga a Matemática das restantes ciências no seu artigo, quando o assunto a que este diz respeito é comum a todas.

Físico matemático