Enquanto deputado (PS), Carlos César considera que acumular dois subsídios públicos para pagar uma mesma despesa (viagem Açores-Lisboa) e assim acumular lucro à custa dos contribuintes (366 euros por viagem, estima o Expresso) é legal e “eticamente irrepreensível”. Lê-se e só se acredita porque a tese vem de Carlos César, que já habituou o país à sua incompreensão quanto ao significado de “ética”. Mas a tese é corroborada institucionalmente pelo presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, que em comunicado garante que os deputados que adoptaram essa prática de duplicação de apoios “não infringiram a lei nem a ética”. É a partir daqui que o assunto fica sério: o parlamento está, ao mais alto nível, a informar que é moralmente legítimo um deputado acumular várias ajudas de custo para a mesma despesa ao ponto de delas extrair lucro e, assim, aumentar artificialmente a sua remuneração.
É difícil conceber uma argumentação em defesa de tal prática. Mas há quem tente. Pedro Adão e Silva, em opinião no Expresso, tentou (e falhou). Primeiro, alerta para o antiparlamentarismo “que tem sólidas raízes entre nós” para matar os mensageiros – como quem diz: cuidado com as críticas ao parlamento, pois estas virão provavelmente de inimigos da democracia. Segundo, estabelece uma equivalência entre os reembolsos de viagens para os Açores/Madeira e descontos para deputados seniores na CP, na medida em que em ambos os casos existiria “duplicação de abonos”. Ora, esta equivalência, que Carlos César curiosamente também ensaiou, é errónea. Por um lado, um desconto para seniores num bilhete de comboio é aceitável, na medida em que diminui o custo total a pagar por essa deslocação (que só é paga uma vez). Por outro lado, o reembolso em dinheiro de viagens pagas pelos apoios da Assembleia da República resulta num lucro para o deputado, porque a viagem é paga duas vezes – isto é, o deputado apropria-se de um reembolso de uma despesa que não foi dele, mas da Assembleia da República. Nas estimativas do Expresso, estamos a falar de um valor que poderá rondar cerca de 1400 euros suplementares de “lucro” por mês. Não há comparação possível.
Sim, os deputados têm salários relativamente baixos para as funções que desempenham – mas isso não legitima que recorram a truques para aumentar artificialmente a sua remuneração. Sim, ao Estatuto de deputado falta coerência e transparência no que toca às ajudas de custo – mas isso não pode servir de escudo para a censura moral do comportamento dos deputados. Até porque a incoerência e a falta de transparência alastram-se à própria actividade parlamentar. Ainda há dias ilustrei com inúmeros exemplos as más práticas do ponto de vista do comportamento individual dos deputados e até procedimental na condução dos trabalhos parlamentares. E muitos outros exemplos deixei de fora, desde a duvidosa imposição da disciplina de voto nos partidos até à violação reiterada de procedimentos legislativos e da Constituição (como descreve José Ribeiro e Castro neste artigo).
Pode-se não gostar do que se vê, mas o retrato é este: o parlamento é um órgão de soberania ferido na sua legitimidade moral. Afirmá-lo não implica cair no antiparlamentarismo, não é ser inimigo da democracia, não é preferir a ditadura. É precisamente o inverso: é querer um parlamento melhor, é aspirar a instituições democráticas mais fortes. E é ajudar o parlamento a melhorar – porque o primeiro passo para identificar soluções consiste em reconhecer o problema. Só que, tudo indica, o parlamento não quer reconhecer o problema, emite comunicados onde garante a sua elevação ética contra todas as evidências e permanece em negação face às suas imperfeições procedimentais internas – que tanto prejudicam a qualidade da democracia. O parlamento está perigosamente a tornar-se no seu próprio maior inimigo. Em vésperas da celebração do 25 de Abril, eis algo realmente pertinente com que os partidos se poderiam inquietar.