Trata-se de uma luta de vida ou de morte: de um lado os que preconizam uma União Europeia (UE) dominada pelos Estados e pelos governos nacionais; do outro, os que consideram indispensável uma verdadeira união de povos e países, uma Europa das nações em que aos interesses nacionais não-vitais se sobreponha um interesse comum, sem o qual não faz sentido falar de união.

Neste jornal, e nos últimos dias, dois artigos tomam posição sobre o tema: José Manuel Fernandes e João Marques de Almeida deixam bem claro que querem uma União intergovernamental, isto é, governada pelos Estados, em directório ou por um só país, quando suficientemente poderoso; estes dois últimos períodos podem parecer estranhos ou deslocados, mas são simplesmente a consequência dos anteriores.

Com todo o respeito que tenho pelos dois, permitam-me salientar quão enganadora é a sua posição. Na verdade, permitam-me ser provocador, o que decorre necessariamente dela, não sendo dito explicitamente, é o fim da UE.
Nada de muito especial, aliás, pois estão bem acompanhados. No Parlamento Europeu (PE), entram agora largas dezenas de deputados cujo principal fito, esse explícito, é acabar com esta (para eles) odiosa organização, a que chamam “monstro”; citando José Manuel Fernandes, trata-se de “outro escalão democrático, (…) uma estrutura demasiado poderosa, demasiado opaca e com demasiadas cabeças. “. Acrescenta ser impossível uma democracia europeia, pois que a própria ideia de democracia à escala do continente “é perigosa” (leiam o artigo, sff, as citações são sempre insuficientes quando o contexto é complexo). Ah, Fernandes também lhe chama monstro…
É interessante esta nova evolução dos intergovernamentais (os que acham que somos melhor governados por acordos pontuais ou de enquadramento feitos entre Estados soberanos no pleno domínio da respectiva soberania, mais ou menos como acontecia nos séculos XIX e XX até as ditaduras levarem a melhor): dantes, clamava-se pela democracia europeia, pela resolução do défice democrático europeu, pela devolução da palavra e da decisão aos cidadãos. Agora, quando se criaram mecanismos institucionais – ainda imperfeitos, é certo – que permitem que isso aconteça, os intergovernamentais dizem que a democracia à escala europeia… não é possível.

Mas comecemos por abordar, de forma sucinta, as razões de ser desta união, que convém nunca perder de vista. Perder de vista o essencial foi o que levou os alemães a conformarem-se com Hitler, os italianos com Mussolini, os portugueses com Salazar e por aí fora. É que a UE se fez como um grito de Nunca Mais o despotismo, Nunca Mais o predomínio dos fortes e ricos, Nunca Mais a miséria. E esta união de interesses e objectivos comuns, do mercado interno e da livre circulação das pessoas, da abertura a outros povos e culturas, da moeda única (sim, podemos falar sobre isso), cumpriu todas as suas promessas, algo que jamais dizem os intergovernamentais: há 60 anos que vivem em paz os seus povos, inédito na História do continente; nenhum país membro resvalou para a ditadura – muitos vinham de experiências mais ou menos longas de despotismo; após a adesão, todos melhoraram de forma substancial a produção de riqueza e o nível de vida dos seus povos – compare-se com países que se mantiveram fora da União; e quanto à segurança, veja-se a diferença entre o que está a acontecer na Ucrânia e a protecção conferida pela pertença à União a Estados que, tal como aquele país, fizeram parte da URSS?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Faz todo o sentido discutir se precisamos ou não da União, desde que a discussão seja intelectualmente honesta, os seus termos colocados correctamente, e quando nela participem os europeus comuns e não apenas os supostamente “iluminados”. Depois será possível pedir aos povos da Europa o que querem – depois!

Ainda algumas afirmações de João Marques de Almeida e José Manuel Fernandes:
A forma como Marques de Almeida descreve o PE é no mínimo discutível. Diz que se “trata de uma instituição onde alguns exemplos de loucura política, mesmo pelos padrões elevados de ‘Bruxelas’, são assustadores”. Não dá exemplo de nenhum, diga-se de passagem. E ao cuidar defender a Comissão e a sua independência (do controlo desses loucos), está de uma penada a pôr em causa toda a estrutura institucional europeia e um Parlamento eleito pelos europeus. Alegam os críticos que poucas pessoas votam para ele; são menos do que devia ser, claro, mas ainda assim mais do que os americanos que votam para o Congresso (40,7% nas mid-term elections de 2010). E já agora, o João terá alguma ideia das decisões europeias em que o PE teve um papel decisivo – e muito favorável aos cidadãos – como aconteceu por exemplo (para dar um único) com a União Bancária?

Quanto ao José Manuel Fernandes (que aproveito para saudar pelo resultado, para já, desta notável experiência que é o Observador), uma palavra para lhe lembrar que a União é uma construção complexa e delicada, muito fácil de destruir, mas cuja destruição deixará em liberdade os antigos demónios. Os britânicos sabem-no bem, mas a força da demagogia e do nacionalismo de antanho continuam a ser fortes entre os dirigentes, mais preocupados com a própria agenda do que com o bem comum. Uma Europa sem união será no futuro irrelevante, quer em termos demográficos, quer económicos, quer políticos (o que todas as previsões comprovam).

Sobre a escolha de Juncker, afinal o leitmotiv principal dos dois artigos: falam ambos em golpe de Estado e desrespeito do Tratado por parte dos grupos políticos do PE. João Marques de Almeida cita o Tratado (e bem, considerando tê-lo feito de cor), mas esquece que o mesmo artigo 17º também acrescenta que “o candidato (a Presidente da Comissão) é eleito pelo PE”… Ora se o Conselho Europeu deve ter em conta as eleições europeias ao escolher um candidato que vai ser eleito pelo PE, não é lógico e, sobretudo, legítimo, que a instituição – os grupos políticos – proponha antecipadamente os candidatos que considera corresponderem ao seu ideário político? Não está em causa, como quer José Manuel Fernandes, se Juncker é “um político cinzento e hiper-federalista”, não sendo essa a melhor “forma de responder à onda populista e anti-EU”. E não está em causa porque o problema da onda populista anti europeia começa justamente em argumentos do género e no modo demagógico e (obviamente) populista como os políticos nacionais, em muitos casos, não discutem (discutiram) a Europa, não falam (falaram) de assuntos europeus, não quiseram saber nem cuidaram daquela que é provavelmente a mais importante questão para o futuro próximo (e até o longínquo) dos europeus. Por isso também, Junker, como Shulz, se mantiveram pouco conhecidos da generalidade dos cidadãos.

Não cabe neste espaço tudo aquilo para que este problema remete. Mas acreditem em mim: o que está em causa é a própria União e a sua sobrevivência. Fora dela Portugal, por exemplo, voltará a ser o protectorado (britânico?) que foi durante o século XIX, o desprezado (as poucas riquezas negociadas nas nossas costas pelos “aliados”) que foi durante o início do século XX, ou a vítima de um neo-despotismo iluminado, orgulhosamente só no seio de um continente dividido e (sempre, até ao advento europeu) entre guerras civis.

Estou a exagerar? Talvez. Mas têm mesmo a certeza?