Um conhecido investigador português de relações internacionais dizia recentemente que não conseguia explicar como é que Portugal não tinha entrado numa forte crise de identidade nacional após o fim do império[1].  Será que este mistério está de alguma forma relacionado com a adesão à União Europeia, que terá substituído a função do império no pensamento geopolítico nacional?

Historicamente, o aparecimento do modelo geopolítico colonial iniciou-se com a conquista de Ceuta, embora a teorização desta conquista tenha resultado de um contexto estritamente peninsular.

Bandeira da cidade de Ceuta, adotada em 1415, cuja permanência foi exigência da população da cidade em 1640, apesar de conservar-se sob domínio castelhano após a restauração. É ainda hoje a bandeira da cidade.

Segundo o estudo geopolítico da História Diplomática de Portugal de Jorge Borges de Macedo[1], as expedições portuguesas a Marrocos do séc. XV (Ceuta 1415, Alcácer-Ceguer 1458, Arzila e Tanger 1471) faziam parte de uma teorização política segundo a qual o Norte de África era um elemento de ponderação peninsular, cujo aparecimento se deve à progressiva perda de eficácia da Aliança Inglesa formalizada no Tratado de Windsor de 1386.

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Esta aliança teve a sua origem na primeira vez em que Portugal foi envolvido nos assuntos geopolíticos centrais europeus, nomeadamente na Guerra dos 100 anos, apoiando as pretensões da Inglaterra ao trono de Castela, quando os castelhanos, por sua vez, eram apoiados pelos franceses. No entanto, a campanha militar luso-inglesa de João de Gaunt e D. João I de Portugal contra Castela, concretizada em abril-junho de 1387, logo após o casamento de D. João I com Filipa de Lencastre (11 fevereiro de 1387), resultou num malogro e terminou numa paz separada anglo-castelhana, em que não entraram os portugueses. Nos termos dessa paz, Gaunt renunciaria ao trono castelhano e a sua filha Catarina – irmã de Filipa – casaria com o herdeiro do trono castelhano, o que veio a ocorrer em 1393. Para os ingleses, em termos geopolíticos, o duplo casamento das filhas de Gaunt anulava a retaguarda peninsular – a Espanha era a retaguarda da França, e Portugal a retaguarda da Espanha – no contexto da guerra dos 100 anos, esterilizando uma possível intervenção peninsular no teatro operacional francês onde se desenrolava o conflito. A partir de cerca de 1390, os ingleses ficaram livres de prosseguir os seus objetivos em França sem terem de se preocupar com retaguardas, mas Portugal ficou sem a contribuição militar da Aliança Inglesa na luta contra Castela. A partir dessa data, a separação entre os interesses estratégicos ingleses e portugueses foi tal que o desembarque na Normandia de Henrique V de Inglaterra – que deu origem à terceira fase da Guerra dos 100 anos, a Lancastrian War – ocorreu precisamente no mesmo ano da conquista de Ceuta – 1415.

No final do séc. XIV, desprovidos do apoio militar que lhes providenciava a Aliança Inglesa, os portugueses procuraram outro modo de entender o equilíbrio peninsular. As elites políticas portuguesas perceberam que a principal alteração geopolítica peninsular no séc. XV seria a expulsão definitiva dos reinos muçulmanos. Compreenderam também a enorme pressão que iria exercer sobre Portugal a aproximação entre Castela e Aragão com esse objetivo. A conquista de Ceuta permitia a D. João I tentar uma aproximação a Aragão (que se concretizou com os casamentos de dois dos seus filhos com princesas aragonesas) pois Portugal oferecia a posição estratégica da nova praça como indispensável para a conquista de Granada. Procurava assim garantir uma relação especial com Aragão, que contrabalançasse o peso excessivo de Castela. Tal acabou por não se concretizar porque Aragão preferiu unir-se a Castela na união matrimonial de Isabel e Fernando (os Reis Católicos). Mas Portugal tinha acrescentado à dimensão geopolítica do flanco ocidental da península um espaço estratégico viável, o Atlântico, cujo aprofundamento aportou à Europa em exclusivo durante mais de meio século.

A motivação para o começo do ciclo do império foi, portanto, peninsular, como contrapartida a um excessivo peso continental. Cerca de quinhentos anos mais tarde, com o fim do império, a função de garantia da independência nacional que tinha desempenhado o apoio marítimo atlântico recaiu essencialmente sobre a Europa, que garantiu as condições de relacionamento externo e de financiamento do desenvolvimento do país durante cerca de 30 anos, até à atualidade.

Hoje em dia, no entanto, essa função europeia começa a entrar em risco, porque a União Europeia iniciou um processo de fragmentação com o Brexit e se verificam outras situações que ameaçam a sua coesão, como a crise dos refugiados e a ascensão eleitoral de movimentos partidários hostis ao projeto europeu, nomeadamente em Itália e em França com Marine Le Pen, que têm em comum o ressurgir das tensões nacionalistas que ameaçam romper as redes da União Europeia.

Na nossa própria península, regressaram inesperadamente e com uma força surpreendente dois tipos de nacionalismo, com objetivos contraditórios, que se enfrentaram nas ruas, na arena política, e nos tribunais: o centralista e o catalão.

O reaparecimento do nacionalismo centralista espanhol não aparenta limitar-se, no entanto, a querer manter as fronteiras atuais do estado espanhol. Ao que parece, pretende também alcançar um objetivo com séculos de antiguidade e igual número de frustrações: a unificação peninsular. Senão vejamos:

O respeitável “Real Instituto Elcano” publicou em 2016 um documento – Barómetro Del Real Instituto Elcano (Brie) 38ª Oleada, elaborado “Con la colaboración de Gobierno de España – Ministerio de Asuntos Exteriores y de Cooperación” cuja pág. 58 menciona, na sequência de sondagens realizadas em Portugal, que “más del 60% de los entrevistados está de acuerdo con la frase “España y Portugal deberían avanzar hacia alguna forma de unión política ibérica. Este resultado es coherente con los obtenidos hace ya algunos años por el Barómetro de Opinión Hispano-Luso. En su edición de 2011 (al parecer la última) un 46% de los portugueses y un 40% de los españoles decía estar de acuerdo con la idea de que “España y Portugal deberían unirse para formar una Federación”.

Por outro lado, a revista “Diplomacia siglo XXI”, órgão da Academia da Diplomacia espanhola – “nacida al amparo de los más prestigiosos Embajadores de España”; cujas armas se baseiam “en el escudo del rey de España Felipe II”, no centro das quais se ostenta o escudo de Portugal; e onde escreveram recentemente o primeiro-ministro espanhol e o ministro de relações exteriores – publicou uma edição dedicada ao “Paniberismo e iberofonia”, onde um conhecido iberista, Álvaro Durantez, mereceu honras de primeira página para discorrer sobre “Paniberismo e Iberofonia”.

Mais recentemente, essa revista publicou um número dedicado à Península Ibérica, comemorativo da primeira visita de Estado a Portugal dos atuais reis espanhóis, onde incluiu artigos como “O Iberismo, uma aproximação historiográfica” e “Elementos para a Articulação do Espaço Ibérico”, onde propõe uma “articulação hispano-luso-andorrenha” na forma de um “Tratado Quadro Regional” ibérico. Nessa edição, que contou com o apoio do ISDIBER, Instituto de Estudos Panibéricos, o editorial repesca a sondagem do Elcano e comenta:

Que sepamos, no existe otro caso semejante en la Comunidad Internacional en que las poblaciones de dos países independientes diferentes se muestren tan proclives al acercamiento e incluso a la unión política. Para hacernos una idea de la dimensión de esta tendencia – tendencia latente y hoy casi inactiva, pero claramente real –, reparemos en la siguiente apreciación: en términos relativos y absolutos hay muchos más portugueses que desean la unión con España que secesionistas catalanes que quieran destruir la integridad de ésta última. Y ya sabemos el ruido mediático y político que, aun desde posiciones minoritarias, son capaces de provocar los separatistas de esa Comunidad Autónoma española. Ahora imaginemos lo que podría conseguir un movimiento iberista de amplia base debidamente concienciado y organizado…

É evidente que esta declaração ávida e voluntarista não leva em conta a ficha técnica da “famosa” sondagem do Elcano em Portugal, que não é fácil de encontrar porque está num terceiro documento, o “Barómetro de la Imagen de España (BIE) 6ª OLEADA”. É aqui, a partir da sua pg. 3, que finalmente encontramos as características técnicas dessa sondagem do Elcano. Passamos a saber que foi elaborada através de entrevistas on line a uma amostra global de 4.105 internautas com a seguinte distribuição:

Isto significa que o universo de entrevistados portugueses pelos quais se concluiu que “no existe otro caso semejante en la Comunidad Internacional em que las poblaciones de dos países independientes diferentes se muestren tan proclives al acercamiento e incluso a la unión política”, se resume, pasme-se, a 400 pessoas.

Por aqui se vê o absurdo da afirmação: “en términos relativos y absolutos hay muchos más portugueses que desean la unión con España que secesionistas catalanes que quieran destruir la integridade de ésta última”.

Para comprovar, aliás, em que posição se encontra a opinião pública portuguesa, basta observar a reação da imensidão dos comentadores e imprensa televisiva, radiofónica e escrita portuguesa ao referendo de 1 de outubro de 2017 na Catalunha. De entre centenas de notícias, os escassos comentadores portugueses que ousaram defender a posição constitucionalista espanhola justificaram-na por dois motivos: receio do precedente catalão sobre situações semelhantes noutros Estados-membros da UE que pudesse fazer perigar o projeto europeu, ou, por friamente raciocinarem que o dualismo peninsular melhor serve os interesses de Portugal. Ou seja, defendiam que mais independências na península significaria uma diluição do estatuto de Portugal na geopolítica peninsular. Houve apelos até, a que apoiar os catalães poderia “estimular as correntes iberistas tanto na Espanha, como em Portugal, e adicionar às dinâmicas de fragmentação as estratégias de integração peninsular”. Mas não houve um único comentador ou jornalista que se colocasse ao lado do governo espanhol por desejo ou ambição de “unión con España”. Muito pelo contrário. A própria unidade espanhola, nos termos em que ela existe hoje em dia, só foi defendida, nos poucos casos em que isso aconteceu, por se entender que essa era a posição que melhor potenciava os interesses de Portugal.

Este episódio deixou também claro o apoio onde, na hipótese de se concretizar o “regresso da história”, se contrabalançará a pressão continental no séc. XXI. Sem Ceuta, sem o Império, regressamos à geopolítica peninsular onde tudo começou, e onde atualmente pontuam as referidas forças centrípetas. Não haja ilusões: o apoio à fragmentação peninsular crescerá de forma diretamente proporcional à pressão iberista.

Outro evento revelador da consciência nacional portuguesa relativamente à “união ibérica” foi a inauguração da estátua de D. Nuno Álvares Pereira em Lisboa em 2016, na sequência da sua canonização em 2009. Tratou-se de uma iniciativa de livre escolha dos lisboetas através de orçamento participativo, o que demonstra como a batalha de Aljubarrota se encontra viva na memória portuguesa, apesar de se comemorar este ano o 633º aniversário desse 14 de agosto de 1385. A este propósito, aconselho aos espanhóis iberistas uma visita ao castelo de Manzanares el Real, nas imediações de Madrid. Aí pode ler-se a seguinte legenda na exposição sobre a história do castelo: “Pedro Gonzalez de Mendoza cedió su caballo a Juan I [de Castela] en la batalla de Aljubarrota (contra los portugueses) para que el rey pudiera escapar de la derrota. Como consecuencia de ello, el mayordomo fue gravemente herido y moriría más tarde. Este gesto de suprema fidelidad del vasallo sería recompensado por el monarca con el señorío de uno de sus mas preciados territorios, el Real de Manzanares.

Por agora, nada mais há a comentar a propósito da “sondagem” do “Real Instituto Elcano” e da revista “Diplomacia siglo XXI”, para além da importância de se rejeitarem firmemente quaisquer “teorias” de “mutuo entendimento” ou “intercompreensão” entre os idiomas espanhol e português, nas quais se fundamenta o “paniberismo” de Álvaro Durantez.

Algumas interrogações permanecem, no entanto, em aberto:

  • Será que o editorialista da revista “Diplomacia Siglo XXI” se apercebeu da legitimidade que estava a conferir às pretensões independentistas catalãs ao aceitar os resultados da sondagem do Elcano relativamente a Portugal?
  • Qual o papel do Ministério dos Assuntos Exteriores espanhol no apoio à documentação iberista produzida pelo Elcano e à Academia da Diplomacia Espanhola?
  • Qual a posição da Fundação Luso-Espanhola na “colaboração” que deu à edição do número sobre a península ibérica da revista, no qual aparece na contracapa?

Em resumo: faz ou não parte da agenda do governo espanhol um apoio ao iberismo?