Está a decorrer um julgamento em Madrid que é fulcral para o futuro das relações peninsulares, que ocupa as primeiras páginas de todos os jornais espanhóis e que praticamente ninguém reporta em Portugal. Que eu saiba, também não há nenhum observador português.

Em causa estão os acontecimentos de 1 de outubro de 2017 (1-O) na Catalunha, relativamente aos quais a acusação pede o máximo de 25 anos de prisão para Oriol Junqueras e pesadas penas aos restantes acusados pelo delito de “rebelião” que consta do art. 472º do Código Penal espanhol: “São réus do delito de rebelião os que se levantarem violenta e publicamente com qualquer dos seguintes objetivos: … 5.º Declarar a independencia de uma parte do território nacional.” Recordo que um assassinato é punível em Espanha com 15 a 20 anos de prisão.

A jurisprudência do Tribunal constitucional espanhol definiu o termo “violência”, exigida por aquele artigo para que possa haver rebelião: “Por definição, a rebelião realiza-se por um grupo que tem o propósito de uso ilegítimo de armas de guerra ou explosivos, com a finalidade de produzir a destruição ou devastação da ordem constitucional”.

No entanto, os líderes independentistas catalães sempre apregoaram a não violência, não se registou um único tiro ou explosão no 1-O, as suas ações foram meramente defensivas das urnas eleitorais, o governo central não decretou o estado de emergência, exceção, ou de sítio, e não foi instaurado qualquer recolher obrigatório. As forças policiais regionais – os “Mossos d’Esquadra” – cooperaram inclusivamente com a Guarda Civil na execução das ordens de Madrid.

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Como refere um jornalista espanhol – castelhano e co-autor de um livro sobre a história de Castela —  “se, após a aprovação da declaração de independência, o governo catalão tivesse dado ordens aos Mossos para controlar os aeroportos e estações de comboios, assegurarem-se das fronteiras, e expulsarem a Guarda Civil da nova república catalã pela força das armas, hoje os líderes independentistas enfrentariam exatamente a mesma acusação: rebelião”.

Porquê a acusação de rebelião?

Se a acusação se tivesse limitado aos crimes que foram efetivamente observados, acrescidos dos que há indícios — desobediência grave à autoridade, prevaricação e defraudação de fundos públicos – o julgamento teria de decorrer na Catalunha.

Ainda assim, a acusação de rebelião não basta para que o julgamento decorra em Madrid, porque os réus são catalães e, como tal, estão sob a jurisdição do Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. Para justificar o julgamento pelo Supremo o juiz instrutor tinha de invocar delitos cometidos fora do território catalão, e por isso argumentou com a compra de urnas fora de Espanha e escondidas em França, a criação de websites fora do território nacional, e a convocação de observadores internacionais.

Certamente não se apercebeu da posição em que se colocava ao invocar rebelião violenta através da compra de urnas, criação de websites, e convocação de observadores.

Mais de 300 catedráticos, professores de direito e juristas espanhóis rejeitaram a acusação de “rebelião” e também a de sedição num apelo público em que apresentaram o julgamento como uma ameaça à própria democracia espanhola, na medida em que essas acusações “abrem a porta à banalização de figuras praticamente inéditas em democracia e com um passado de triste memória, razão pela qual o legislador de 1995 as restringiu a casos de uma materialidade lesiva claramente superior à atual”.

O catedrático de Direito Penal em Jaén, Guillermo Portilla Contreras, promotor do texto, comentou que a diferença entre insurreição e rebelião reside em ser esta última “um ato de força contra a integridade territorial ou a ordem constitucional que não possa resolver-se com outros meios que não sejam o recurso às Forças Armadas”. No caso do 1-O foi plenamente suficiente o recurso à Guarda Civil, pelo que o enquadramento deveria ter sido apenas de insurreição.

O caráter pacifico dos protestos de 1-0 foi reconhecido pela Amnistia Internacional, que acusou Madrid de restringir desproporcionadamente os direitos de liberdade de expressão e de manifestação pacífica dos apoiantes da independência catalã, para além de emprego excessivo de força pelas forças de segurança contra os manifestantes, e apelou à libertação imediata de dois dos réus. Também a Human Rights Watch condenou o excessivo uso de violência pelas forças policiais na Catalunha que provocou 893 feridos, segundo essa organização.

No julgamento em Madrid, todos os acusados — que se entregaram de livre vontade — consideram-se presos políticos por delito de opinião: o de serem favoráveis à independência da Catalunha.

Irão certamente receber fortes penas neste processo. Está em causa a primeira tentativa de independência da Catalunha desde que há democracia em Espanha e o governo central quer impor um exemplo que seja absolutamente dissuasor de novas aventuras independentistas, seja na Catalunha ou noutras regiões do país. Recorre à mesma estratégia de Filipe V – o primeiro rei Bourbon da Espanha — nas instruções que enviou ao Duque de Berwick, comandante das tropas que sitiavam Barcelona em 1714: “merecem ser sujeitos ao máximo rigor segundo as leis da guerra, para que sirvam de exemplo a todos os meus outros súbditos”. O atual rei Filipe VI foi igualmente contundente no discurso sobre a situação na Catalunha de 3 de outubro de 2017, acusando os independentistas de “deslealdade inadmissível”, “quebra dos princípios democráticos”, e de perpetrarem uma “inaceitável tentativa de apropriação das instituições históricas da Catalunha”.

Por sua vez os acusados têm consciência de que, através da sua estratégia de não violência, conseguiram ir mais longe e estar mais próximos da independência do que qualquer outra região espanhola, incluindo o País Basco quando enveredou pela via do terrorismo. Quanto maior a condenação, maior e mais arreigado será o fervor de independência e maior a fama de mártires terão. Continuarão a desenvolver a estratégia cultural e educacional de separação em relação a Espanha e aguardarão por um momento de maior fraqueza do governo central que lhes permita atuar decisivamente. Tudo indica que não irão desistir.

O governo central escolheu a via da força e da imposição para lidar com a questão. Instrumentalizou o direito e a justiça à sua vontade de punição exemplar, de forma a enviar uma forte mensagem às autonomias de que a unidade do Estado é superior à vontade democrática.

Em Madrid, experimenta-se um momento de exaltação daqueles que só os espanhóis sabem viver. Todos os dias, as principais páginas dos jornais situacionistas apresentam os êxitos das interpelações dos juízes contra os humilhados réus catalães. A maior acusação é a de terem aviltado aquilo que se esperava dos principais dirigentes autonómicos: que fossem os primeiros a defender a unidade da Espanha. Não se lhes perdoa a traição, nem há a menor compreensão para com os sentimentos de metade da população da Catalunha.

Os catalães viveram a ilusão de que o séc. XXI lhes traria o reconhecimento de uma individualidade pela qual anseiam há séculos. Enganaram-se no país. Ao contrário do Reino Unido, que aprendeu que a melhor maneira de lidar com as dissensões internas é ouvir a voz da população, a Espanha continua a usar a metodologia da união pela força. A democracia espanhola ainda teme a voz das suas próprias Autonomias.

Alguma coisa evoluiu, no entanto. Se estivéssemos no sec. XVIII, em vez de 893 feridos teríamos provavelmente centenas de mortos.

A questão é a de saber por quanto mais tempo será viável manter a unidade de um país pela força.