1 Há leis melhores e leis piores. Mas tão ou mais importante que a qualidade das leis, é o comportamento individual daqueles a quem a lei atribui responsabilidades.

Face a leis boas e más há duas atitudes possíveis. Uma é deixar que a sociedade (Estado e privados) decida quais as normas que faz sentido e não faz sentido aplicar. Outra, é aplicar a lei tal como ela é e daí tirar todas as suas consequências. Caso seja má, isto é, contenha normas conducentes a práticas contrárias àquilo que era o objetivo do legislador, isso torna-se evidente e altera-se a lei. O modelo português é o primeiro. Entre nós a lei é uma referência geral para se ir cumprindo conforme as conveniências e as interpretações de momento. Usa-se uma flexibilidade criativa na interpretação e na aplicação da lei o que leva, no caso português, à diluição da responsabilidade individual. Há sempre um outro a quem atribuir a culpa. Já o modelo britânico é o segundo. A lei, boa ou má, é para cumprir, é cumprida e produz consequências.  O melhor exemplo para se perceber o modus operandi inglês é a “poll tax” um imposto per capita, eficiente, mas profundamente injusto, aprovado no tempo de Margareth Thatcher. Testemunhei como uma mãe solteira e pobre, vivendo em habitação social, foi visitada pelos serviços tributários que lhe listaram os bens considerados não essenciais e que lhe seriam penhorados caso não o pagasse. As manifestações em todo o Reino Unido contra este imposto, foram uma das causas da sua queda pouco tempo depois. Thatcher assumiu a responsabilidade e pagou o preço político desta lei. Entre nós, quando as coisas correm mal, a responsabilidade, técnica ou política, geralmente não existe. Uma forma de aliviar responsabilidades é dizer que é preciso mudar a lei.

2 Estão agora a iniciar-se os julgamentos de entidades envolvidas nos incêndios de Pedrogão Grande: autarcas de câmaras municipais, responsáveis de bombeiros, entidades privadas com a sub-concessão de manutenção de estradas. É sobejamente sabido, pelos relatórios produzidos, a gravidade do fenómeno meteorológico que acentuou desmesuradamente esses incêndios. Que a natureza foi adversa ninguém duvida, mas aquilo que o tribunal deve apurar é se para além disso houve também negligência humana. A lei estabelece e a responsabilidade que atribui aos diferentes atores. No que toca à limpeza das faixas de combustível que bordejam as estradas diz essencialmente três coisas. Que deve haver planos de prevenção de incêndios florestais, a nível nacional, distrital e  municipal. Que existe uma responsabilidade de limpeza de dez metros de cada lado da estrada por parte da entidade responsável pela gestão das estradas (município, Estado, entidade privada sub-concessionária). Que caso essa limpeza não seja feita, o município notifica a entidade responsável para o fazer, e se esta não o fizer no prazo estabelecido, promove ele próprio a limpeza e manda a conta a quem tinha a responsabilidade de o fazer. Há assim dois níveis de responsabilidade: a primária, e primeira, é da entidade gestora. A segunda, que entra em campo, só quando a primeira não se efetiva, é do município que deve zelar pela proteção da floresta. Aquilo que ouvimos (lemos) das declarações em tribunal segue a linha da desresponsabilização individual e leitura criativa da lei. O argumento de que nada poderia ser feito face a um “tsunami meteorológico” tem o problema da ausência de contra factual. Mesmo com o tsunami incontrolável será que teriam morrido todas aquelas pessoas se as faixas de combustível existentes fossem de 20 metros (dez de cada lado) em vez dos cinco metros, ou menos, existentes? Nunca o saberemos, mas o tribunal deverá dar resposta a esta questão. Um segundo argumento, usado pela Ascendi (com a sub-concessão da EN236-1 onde morreram 63 pessoas), de que a interpretação jurídica dentro da empresa era de que a limpeza deveria ser feita apenas quando era notificada pelo município para o fazer é abstrair-se pura e simplesmente da responsabilidade empresarial e individual e tentar passar a responsabilidade para o município.

3 Se os julgamentos de Pedrogão estão a começar o da morte de Ihor Homenyuk já levou a uma sentença (em fase de recurso). Essa tragédia individual perpetrada no “exercício” de funções de soberania pelo Estado português, é algo que não pode deixar de chocar quem tenha um pingo de humanidade. O tempo que levou a tutela política a perceber, graças à comunicação social, a gravidade do que se passou no aeroporto é algo incompreensível. Para a culpa, deste atentado aos direitos humanos, não morrer solteira demitiu-se (ou foi demitida) a Diretora Nacional do SEF. Agora, à boa maneira portuguesa, para apagar a nódoa, o governo propõe-se extinguir o SEF, algo que segundo alguns especialistas em direito constitucional (Jorge Miranda e Rui Pereira) não o poderá fazer sem passar pela Assembleia da República. É já claro que a reestruturação do SEF irá, e bem, à Assembleia da República, pois quase todos os partidos, à direita e esquerda do PS, o pretendem e o PCP já anunciou que se o governo quiser aprovar a extinção do SEF, através de  decreto-lei, que o partido proporá a sua apreciação parlamentar. É na AR que deve ser discutida, de preferência com proposta ou projeto de lei, uma eventual separação entre as funções policiais e administrativas do SEF (o que não obriga à sua extinção). Mas o que falhou, no caso Homenyuk,  não foi o desenho institucional do SEF, a definição das suas atribuições e competências que resulta da lei. O que falhou foi o desempenho individual de dirigentes, que aparentemente nada sabiam do que se passava no Aeroporto de Lisboa e o comportamento individual de alguns inspetores, já condenados por “ofensa à integridade física grave e qualificada”. O problema do SEF, não se resolve assim com a sua extinção, mas com ter recursos humanos suficientes que acompanhem o enorme aumento do fluxo turístico, ter instalações adequadas para o seu exercício, inspetores e administrativos bem selecionados e com a devida formação, dirigentes com autonomia para exercer as suas competências e uma tutela política que saiba definir as suas prioridades.

Em Pedrogão ou no SEF a questão é a mesma. O problema essencial não resulta de más leis, ainda que possam ser melhoradas, mas da forma como cada um assume, ou não, as suas responsabilidades.

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