Há uma velha e preconceituosa ideia na vida pública portuguesa que hoje — precisamente hoje — convém contestar, para que um lugar comum não se transforme numa verdade estabelecida por mera força da inércia. É a ideia de que Vasco Pulido Valente expunha as fraquezas de Portugal porque não gostava de Portugal; e expunha os vícios dos portugueses porque não gostava dos portugueses. Era precisamente o contrário: Vasco Pulido Valente expunha as fraquezas de Portugal porque gostava de Portugal; e expunha os vícios dos portugueses porque gostava dos portugueses. Estas longas décadas de crónicas violentas, ácidas e pessimistas foram um empenhado e comovente esforço para nos tornar na melhor versão de nós mesmos.

Isso não aconteceu só nas crónicas — aconteceu também nos livros de História. Vasco Pulido Valente acabou com algumas fantasias da nossa auto-indulgência. A mais relevante era a de que a Primeira República tinha sido um pequeno paraíso de democracia, tolerância e elevação — uma mentira concebida com objetivos políticos conhecidos. Vasco Pulido Valente destruiu essa ficção sem piedade, expondo uma Primeira República de violência e de perseguição, não para nos tirar a doce ilusão de um passado dourado, mas para nos salvar de um engano que poderia levar à repetição de erros terríveis.

Nas últimas décadas, construiu-se uma caricatura de Vasco Pulido Valente que o colocava numa pequena bolha onde cabia apenas a sua casa e o restaurante Gambrinus, uma forma de o menorizar como apenas um colunista azedo que olhava o país de uma posição de privilégio e conforto. Mas Vasco Pulido Valente não foi nada disso. Talvez as pessoas não se lembrem, mas convém não esquecer — sempre que a democracia portuguesa esteve em perigo, ele apareceu onde era mais necessário, ao lado dos líderes políticos que precisavam de apoio e de força. Não ficou em casa, nem ficou no Gambrinus. Pôs a cabeça de fora e pôs a cabeça no cepo.

Logo depois do processo revolucionário, Vasco Pulido Valente esteve ao lado do Presidente Ramalho Eanes, de quem foi próximo. Nessa altura, a coisa mais importante para a democracia portuguesa era pôr os militares no seu sítio, evitando que as Forças Armadas se tornassem donas do regime. E isso foi feito por Eanes, que tinha a autoridade da farda e o duplo poder da caneta e dos tanques.

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Em 1978, o maior perigo para a democracia portuguesa era já outro: a perpetuação da esquerda no poder, o que implicaria, por esta ordem, a marginalização, a radicalização e a revolta da direita moderada. Quatro anos depois da revolução, só seríamos um país normal se a direita pudesse chegar ao poder pelo voto. Por isso, Vasco Pulido Valente esteve ao lado de Francisco Sá Carneiro a construir a Aliança Democrática. Toda a gente lembra que Vasco Pulido Valente foi secretário de Estado da Cultura da AD, mas esse não foi o cargo mais importante dele nesse Governo. Na verdade, Vasco Pulido Valente só ficou com a pasta da Cultura porque os outros convites falharam e, em cima da tomada de posse, Sá Carneiro pediu-lhe esse favor. Mas o papel mais relevante de Vasco Pulido Valente no Governo da AD foi o de secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro. Durante o planeamento e execução da Aliança Democrática, ele reunia quase todos os dias com Sá Carneiro.

A terceira vez que Vasco Pulido Valente esteve nos gabinetes e nas ruas a ajudar a democracia portuguesa foi em 1986, na primeira campanha presidencial de Mário Soares. Mais uma vez, o regime estava em risco. A lenda lembrada habitualmente só fala da luta épica entre Soares e Freitas, mas a batalha fundamental começou na primeira volta. Para sermos um país moderno e tolerante, era preciso que a esquerda moderada e democrática derrotasse, de uma vez por todas, a extrema-esquerda terceiro-mundista e revolucionária. E isso só aconteceria com uma dupla vitória de Soares: primeiro, ele precisava de vencer Maria de Lurdes Pintassilgo (apoiada pelos saudosos do PREC) e Salgado Zenha (apoiado pelo PCP), para mostrar que o socialismo democrático era maioritário à esquerda; depois, precisava de vencer Freitas do Amaral, para mostrar que o socialismo democrático conseguia derrotar a direita sem o nevoeiro da revolução.

Eanes não gostava de Sá Carneiro, Sá Carneiro não gostava de Soares, e Soares não gostava de Eanes. Mas Vasco Pulido Valente esteve com os três em sucessão e conseguindo a incrível proeza de fazer essa soma mantendo uma total coerência: quis derrotar os militares revolucionários, quis levar a direita democrática ao governo e quis colocar a esquerda moderada na Presidência da República porque percebeu que, em cada um daqueles momentos, esse era o caminho para Portugal ser uma democracia a sério. Poucos o compreenderam, porque veem a política como a filiação a uma tribo e a um chefe e não como a concretização de uma ideia do país.

Não quero parecer demasiado sentimental, mas a inescapável verdade é que Vasco Pulido Valente escreveu crónicas e livros de História e lutou e arriscou politicamente porque gostava de nós. Em outubro de 2018, deu uma entrevista em que, falando sobre os portugueses, disse: “Nós somos óptimos”. Não era ironia nem sarcasmo. Como saberão todas as pessoas que leram o tocante texto que Vasco Pulido Valente escreveu quando fez 50 anos, ele sempre foi assim.

Nota: Gostava de sublinhar, a benefício da transparência, que devo a Vasco Pulido Valente o favor de me ter deixado organizar o seu último livro de crónicas de imprensa, “De Mal a Pior”. Por outras razões, tínhamos passado algumas horas a falar sobre a sua vida, mas de resto ele não me conhecia quando me entregou esse trabalho. Devo-lhe ainda tudo o resto, que é muito.

[Texto editado a 26 de fevereiro]