No início de 2022 convém rever o que tem sido a epopeia da pandemia de COVID-19. Podemos aprender com a tentativa de ver lições no passado. Passado que se prolonga e não larga o presente.
Entre muitas conclusões, entre provisórias e definitivas, há já quatro confirmações muito evidentes da pandemia:
- É difícil tomar decisões na ausência de dados. Em saúde pública, o preço da hesitação pode ser maior do que o custo da precipitação, o que pode e deve desculpar muitos dos erros que já foram cometidos.
- Não há uma doutrina geral de comunicação em saúde que possa servir para todas as populações e grupos de risco.
- A desinformação nos tempos da web e redes sociais é quase impossível de combater e a luta contra a informação errada, perniciosa, deliberadamente maldosa ou apenas ignorante é muito consumidora de tempo e recursos. Na verdade, impossível de contrariar. A mentira responde ao que as pessoas querem ouvir, propaga-se mais depressa de que uma infeção. Em todo o caso, antes isso do que o controlo político-policial da informação.
- Todas as intervenções em saúde têm de ser globais no espaço, nunca só nacionais ou regionais, na abrangência, com saúde em todas as políticas, gerais, cobrindo todos os setores do bem-estar, com avaliação criteriosa de impactos e visão de curto, médio e longo prazo.
Foi a trapalhada sobre utilidade das máscaras, logo a abrir, a confusão sobre limitações de entrada no país, os confinamentos, os medicamentos que serviam e não serviam, a “descoberta” de que não havia legislação específica aplicável para quarentenas por doença infeciosa, a tomada de empréstimo da legislação sobre proteção civil, a invenção do “confinamento” e “desconfinamento”, a ausência de coordenação com os setores privados e social, a falta de ventiladores e de quem os operasse, a importação de material impróprio, os erros sucessivos no enceramento de serviços clínicos para doentes sem COVID-19, a incapacidade de resposta na linha “saúde 24”, conferências de imprensa diárias onde a reputação dos dirigentes se foi afundando, a degradação progressiva do estado de saúde física e mental da população, a crise laboral e económica, os atrasos e recuos na vacinação cuja utilidade foi empolada, desvalorizada, recuperada e ainda não completamente explicada (o governo precisou de um comentador externo para fazer um exercício demonstrativo que se tivesse sido feito pelos canais oficiais não teria a mesma credibilidade) …nem me consigo lembrar de tudo.
Mas não é possível afirmar que tudo isto se passou apenas em Portugal e apenas por culpa dos dirigentes que, não duvido, fizeram o pouco ou muito que poderia ter sido feito e, no meio da natural desorientação zangaram-se de vez em quando e nem sempre concordaram com a visão técnica, difícil de consensualizar. Podiam ter poupado a população ao espetáculo da zaragata de que as inconsequentes reuniões no INFARMED são o melhor exemplo. Hoje parece claro que o Governo queria espetáculo, entretenimento e tornar público que alijava a carga da responsabilidade das decisões depois de meses de deriva.
Mas nem com o suposto aconselhamento técnico conseguiram fazer muito melhor.
A questão da terceira dose de vacina para SARS-Cov-2 foi mal conduzida desde o início – muito em particular pela OMS – e a vacinação das crianças foi um disparate completo na forma como foi gerida, decidida e publicitada. Note-se que até hoje ninguém tem a certeza de que tipo de “imunocomprometidos” devem ser vacinados e, no entanto, a necessidade desta profilaxia neste grupo mal caracterizado e amalgamado de pessoas é muitas vezes apresentada como certa. Sou um crente na imunização ativa contra a COVID-19 com vacinas e tenho defendido o seu uso de forma global na população adulta. Esperei por informação que me levasse a acreditar na possível efetividade da terceira dose de vacinas com mRNA e a partir de novembro recomendei-a e sujeitei-me a terceira injeção de vacina. Todavia, agora que conheço mais dados, ainda não me sinto igualmente convencido na mesma medida da eficácia profilática da vacinação, a título individual e coletivo, de todas as crianças e temo estarmos em presença de um desperdício de medicamento. Mas antes de pensar na utilidade de vacinar crianças, certos de que poderia ser preciso repetir vacinações de adultos, fosse com estas ou outras vacinas que virão melhoradas, o Governo mandou encerrar os centros de vacinação que tinham sido montados. Globalmente, continuo a dizer que em termos de vacinação o maior problema mundial foi o de se terem agravado desigualdades continentais e, dessa forma, ter permitido a manutenção de “viveiros” de mutações em zonas densamente povoadas e insalubres.
É certo que quem nos governa está numa situação peculiar, agravada pela expetativa de eleições, em que vai jogar entre a injeção de medo ou a confiante displicência. Antecipar o pior é melhor do que mentir, tal como desvalorizar os riscos é inconsciência. Reconheço que é muito difícil encontrar o meio termo. Não tenho dúvida de que escolherão a comunicação que lhes parecer mais útil em termos de angariação de votos. No entanto, insisto que a mensagem principal, a de que é útil usar sempre máscaras e lavar as mãos, tem sido ultrapassada pela obsessão nos testes que nada previnem se não houver uma política de massificação concertada de rastreio a grupos de risco e quarentenas consequentes. Notem como a confusão é total – internacionalmente – entre 5,7, 10 e 15 dias de confinamento em casa para quem acusou positivo. Ninguém tem a certeza do que diz, o que é o ponto de partida para todos deixarem de acreditar no que ouvem.
E se é verdade que a imposição de testes negativos para quem viaja é inteligente, embora decretado tardiamente nesta 5ª vaga (a minha opinião é que nunca deveria ter deixado de ser obrigatório), a mesma imposição para assistir a jogos de futebol, ir ao cinema ou jantar fora tornou-se um pesadelo. O efeito sanitário mais visível não foi a diminuição da transmissão, mas a sobrecarga dos serviços de urgência hospitalar para testes e medicação de constipações com paracetamol. Não teria sido mais ajustado voltar a ter os desafios futebolísticos só na TV? E vejam como foi a confusão com os cinemas – uns dias dizem que é preciso teste, depois dizem que não e no fim a DGS “esclarece” que tem de haver teste negativo. Para quê? E com os restaurantes? Não servia o autoteste – que na verdade servem para quase nada – e no dia seguinte já chegava o autoteste feito na presença do especialista em técnicas de colheitas de zaragatoas nasofaríngeas: o empregado que está na porta. Ainda mais complicado é que se tiver tido uma infeção nos últimos 180 dias, desde que o possa comprovar, já não precisa de teste. Razão? O teste pode permanecer positivo meses após a doença ter passado. Conclui-se que pessoas infetadas e assintomáticas, mesmo que o contágio tenha sido há meses e desde que não tenham detetado a doença, poderão ter tido agora um teste positivo e ter-lhes-sido vedada a entrada num qualquer lugar, apesar de não infeciosos. Mas há mais. A vacinação era importante e vital! Logo, fecharam os centros de vacinação nos dias de festa. Caramba, as nossas autoridades têm gosto em colocar-se a jeito para serem criticadas.
Mantemos uma epidemiologia de ouvir dizer. Porque não divulgam dados sobre status vacinal dos que são positivos, dos internados e dos que morrem? Porque insistem no masoquismo de divulgar números de infetados, batendo recordes, quando esse dado já nada nos diz sobre a realidade da expansão comunitária da variante mais recente do SARS-CoV-2, nem nos ajuda a planear o futuro.? Com a inevitável “gripalização” da COVID-19 vamos continuar a apelar a testes sistemáticos? Quanto nos vai custar todos esses testes? Que benefício estamos a tirar desta informação? Que estamos nós, no SNS, a deixar de fazer e pagar para manter testes a quem quer ir ver a bola? Enchemos as urgências de constipações para testes e medicação com paracetamol, para quê? A linha Saúde 24 baqueou, como é habitual em todos os Invernos, mas só agora é que estão a rever o algoritmo de perguntas e respostas. Afinal o algoritmo é “vá para o hospital mais próximo”…
Não é nada fácil governar saúde quando é preciso estar sempre a improvisar, a tentar adaptar um sistema que é quase inflexível, gerindo expetativas e sem uma máquina de comunicação eficiente e um quadro organizativo e legal sólido. Para improvisar bem é preciso saber muito. O tempo foi passando e já deviam ter aprendido com os erros.
PS: O facto de o SARS-CoV-2 ir, inevitavelmente, passar a ser um vírus em circulação na comunidade, tal como já acontecia com outros coronavírus, não significa que a COVID-19, a de 2019, se torne em doença endémica. O que vamos ter será um quadro de recorrência sazonal, tal como com a gripe, com clínica variável e dependente do tipo de vírus e do contexto do hospedeiro. O mais seguro seria ter uma terminologia nosológica mais “aberta”, em que se fale de SARS-CoVID-2, podendo acrescentar-lhe um identificador de ano, ou outro, que sirva para identificar uma emergência pandémica. Hoje, com os vírus em circulação, a COVID-19 já não é sempre caracterizável clinicamente como quando foi batizada. Resta um conjunto de manifestações que parecem estar ou estão associadas à presença de SARS-CoV-2 nas vias respiratórias. Haverá um grupo de doenças associadas aos coronavírus que deverá incluir, além das indistinguíveis “constipações” com coronavírus, a MERS, a SARS-CoVID-1 e a SARS-CoVID-2 com um espectro clínico variável e amplo. Notem que a doença anteriormente designada, mal, por long-COVID, passou a ser post-COVID, muito melhor, embora a OMS entenda que este diagnóstico só possa ser feito em doentes que tiveram algum tipo de COVID-19 sintomática e o CDC aceite casos em que possa ter havido COVID-19 assintomática. Ainda bem que a Medicina nunca é definitiva.