Nos tempos em que a TSF era uma rádio que não me obrigava a desligar ou a mudar de estação – antes de Bruno Nogueira, Pedro Adão e Silva e Pedro Marques Lopes, Ricardo Araújo Pereira e de me saturar de um “Fórum TSF” em tom paroquial costumeiro ou da ladainha matinal de Fernando Alves que liga-tudo-com-tudo-via-poesia-para-acabar-sempre-amarrado-ao-politicamente-correto – aprendi uma tese recorrente em Carlos Amaral Dias, parceiro de Carlos Magno, quando em conjunto faziam o programa “Freud e Maquiavel”. A tese defendia que no centro não se passa nada de importante. O que é verdadeiramente importante passa-se nas periferias. Nada melhor do que a África para percebermos as tentações da Europa.
Há décadas, um país africano enveredou por um ciclo progressista radical dirigido pelo ‘Syriza’ da época. Rumo a um futuro glorioso livre dos vícios do capitalismo (a senhora Merkel daquele contexto), as ‘massas’ foram convocadas a participar ativamente no exercício do ‘poder popular’, sintomas ainda vivos através da aprovação de programas políticos, ‘orçamentos participativos’, decisões e candidaturas ‘cidadãs’ ao sabor dos apetites de novas ‘massas’.
Apesar de num tempo remoto não ter sido assim e da persistência do autoritarismo, no passado recente o sistema judicial do território africano regulava-se pela formalidade processual, autonomia institucional, funcionava no interior dos tribunais, a lei tinha algum valor. Até que irrompeu a revolução. Entre outras manifestações, nasceu uma eufórica ‘justiça popular’ prenhe de urgências de mudança. Era preciso combater a opressão e responder aos profundos anseios da população. Nada como transferir o exercício da justiça para a praça pública, libertá-lo de formalidades legais e processuais que o povo não compreendia, proibir a advocacia, fazer entrar em cena o espetáculo público da violência, legalizar os castigos corporais. A nova justiça era direta, exemplar, persuasiva pela violência, simples, sem sombras de corrupção. Nunca como nos anos da revolução a população sentiu a justiça tão perto. Praticamente não havia crimes. O homem novo da sociedade nova estava a chegar.
Insensível, a realidade acabou por se impor. O ciclo da orgia revolucionária esgotou-se. Pouco mais de uma década passada, os governantes do país africano sentiram necessidade de retomar formalidades governativas antes abjuradas. Descobriram que a justiça teima em não voltar ao antigamente. Parte da população, agora bem mais desconfiada e desprotegida, não se adapta. À revelia das recicladas novas boas intenções dos pós-revolucionários, em momentos imprevisíveis, as antigas ‘massas’ dão vida ao recalcado ‘poder popular’. Fazem-no por conta própria, queimando vivos suspeitos de agressão criminal, fenómeno nunca visto antes da revolução. Os linchamentos têm lugar em subúrbios onde hoje o discurso das pessoas comuns sobre o mundo continua fortemente influenciado pela ação do grande herói dos anos revolucionários, morto há quase três décadas.
Espasmos de regressão civilizacional que deixam atónitas as elites. Como sempre progressistas, persistem na procura de justificações no ‘colonialismo’, no capitalismo, no Ocidente, nos ricos.
Indissociável da anterior, os tempos eufóricos de ‘mudança’ legaram outra herança às gerações que se sucedem: a desregulação da relação cultural com a propriedade, um referente-chave dos equilíbrios sociais. A propriedade comunitária africana tradicional e a propriedade individual, esta há muito progressivamente introduzida pelos colonos europeus, não se atropelavam. Mas ambas foram abruptamente deslegitimadas pelos revolucionários. Passou a valer apenas a utopia da propriedade coletiva do estado, estranha a tradições e práticas preexistentes. Na ressaca desta engenharia progressista, a colheita também chegou. A criminalidade disparou como nunca entre a gente comum, hoje ainda mais condicionada pela pobreza e cujo inconsciente coletivo mantém latente os princípios dos dias anteriores do ‘poder popular’: a propriedade é um roubo, é um produto da opressão.
O tempo passa, os lugares mudam, porém a condição humana continua tentada pelo abismo. Para já, o verdadeiro Syriza limita-se à informalidade dos que não usam gravata, oblitera as mulheres de cargos de liderança ministerial, exibe o poder num conselho de ministros para espetáculo público em direto nas televisões, os seus líderes evidenciam tiques de quem pode romper acordos formais com outros estados democráticos soberanos, paira o fantasma de se poder mexer na questão sensível da propriedade e, não menos, é manifesto o desejo de romper com o passado imediato. Sintomas da propensão para a regressão civilizacional própria da violência revolucionária.
Talvez seja tempo de os europeus ocidentais provarem do veneno que os seus intelectuais ajudaram a espalhar pelo mundo. Esperemos pela Grécia das próximas décadas para ver até que ponto desabrocharão na vida quotidiana as sementes de um ideário progressista exponenciado pelo exercício do poder, sobretudo se alimentadas pela imagem do novo herói revolucionário, mesmo que vá dando sinais de domesticação.
Entre os europeus ocidentais, o exorcismo do passado faz com que a extrema-direita de hoje viva sujeita a forte escrutínio público. É mal tolerada em sociedades muito conscientes de que determinados aspetos das suas utopias estão para além dos limites da razoabilidade, do humanismo, da decência e tem espaço apenas fora do aparelho do estado. Risco maior é o de o equivalente não acontecer com a extrema-esquerda. O seu lastro histórico de irresponsabilidades, crimes, genocídios, purgas, perversões civilizacionais não é menos evidente. Porém, há décadas que a extrema-esquerda se reproduz em rédea solta no berço mais ameaçador: no interior da máquina do estado onde as utopias radicais são sempre nefastas. Dever-se-ia ter aprendido mais com o nazismo.
O que está em curso não são meros lapsos ou incidentes. É produto de uma loucura civilizacional pensada, programada, estudada, publicada. No seu âmago está o sistema universitário, o Cavalo de Troia do Ocidente. Em tempos de sociedades do conhecimento, é a partir dele que o resto é condicionado com muitas vantagens e sérias desvantagens.
O facto é que as sociedades vão acumulando lixo intelectual à custa do muito que gastam com o ensino. Os Syriza, Podemos, Bloco de Esquerda e Derivados são frutos de sementes plantadas em viveiros universitários, privilégio felizmente impensável de ser concedido ao alter-ego, a extrema-direita. E como não existem economias sem crises cíclicas – qualquer sistema dinâmico que envolva infindáveis relações humanas tem ciclos de ascensão, declínio e renovação permanentes –, e supondo que se continue a fingir que o ensino superior não constitui um sério problema político, a cada novo ciclo de crise económica o Ocidente pagará um preço crescentemente pesado pela sua indolência à sovietização das suas sociedades.
Além dos estragos praticamente irreparáveis no domínio das atitudes e comportamentos no ensino básico e secundário, considerando a repercussão social que isso acarreta em tempos de escolarização massificada, a fertilidade da semente não deixa dúvidas. Hoje, qualquer ideia de cidadania que caia fora do etéreo núcleo progressista soa a errada, a ataque à dignidade da condição humana, a ataque aos desfavorecidos, a ataque às minorias. O simples bom senso deveria recomendar o contrário. Cidadania responsável define-se pelo que está longe dos Syriza, Podemos, Bloco de Esquerda e derivados, universidades ‘progressistas’, comunicação social ‘de causas’.
Descontando os clássicos, se os livros de geração recente ainda podem ser estimáveis, entre-se numa qualquer das grandes livrarias, como as FNAC ou as Bertrand, percorra-se os escaparates das ciências sociais, humanidades e literaturas para se perceber como se reproduz até à náusea este estado de demência civilizacional. Para que o enunciado não fique sem conteúdo, recomendo um dos últimos ensaios para consumo massificado publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, financiada por ‘capitalistas’. O título é “Confiança nas instituições políticas” (2015, nº50). Ana Maria Belchior é a autora, universitária especialista em ciência política.
O conteúdo do livro segue uma lógica intrigante. Na identificação de responsabilidades pela desconfiança das sociedades nas suas instituições políticas, o leitor vai sendo empurrado para o interior dos partidos políticos moderados do centro. Em Portugal, os maus exemplos preferenciais vêm de atitudes de governantes do PSD. Os do PS são mais poupados. Na perspetiva do ensaio, as pressões de fora das forças políticas moderadas ficam invisíveis ou funcionam como se não tivessem os mesmos ou piores efeitos no desgaste das instituições, pressões vindas dos eufemísticos ‘movimentos sociais’, sindicatos, universidades ‘progressistas’, jornalismo ‘de causas’, entre outros, e como se esta panóplia fosse apenas ‘cívica’ ou ‘despolitizada’ quando sabemos serem as mil e uma caras do radicalismo político, o seu habitat natural. Depois, o texto ultrapassa em pose de altivez asséptica o crescimento da extrema-direita na Europa para terminar na glorificação nada subtil da academicamente designada “esquerda-libertária” (p.78). Páginas adiante, ficamos ainda melhor iluminados através da explicação da ideia de “democracia forte”, atribuída a Benjamin Barber, caraterizada pelo “(…) sólido envolvimento da participação dos cidadãos (…)” contra a “(…) ‘democracia fraca’ ou ‘magra’ (a democracia representativa liberal)” (p.82).
Em suma, a ciência política atesta, num tipo de escrita pensado para o grande público, as virtudes da ‘democracia forte’, bem como que o seu potencial paira nos antípodas das atuais tendências ‘liberais’, as dos partidos políticos moderados. Na prática, mais uma argumentação panfletária escondida numa duvidosa sustentação teórica e numa objetividade estatística servida em doses maciças.
Neste filme de terror, só uma estulta ingenuidade faz com que não se perceba que existem instituições a que as sociedades atribuem responsabilidades fundamentais, por isso muitas delas são públicas, ávidas de empurrar os sistemas sociais e os sistemas políticos ocidentais borda fora ‘desta’ sociedade e ‘desta’ democracia ‘liberais’ em prol de ‘outras’, as ‘alternativas’ de tipo ‘forte’, eufemismos que vão preparando o caminho de regresso às democracias ‘populares’ e às justiças ‘populares’ inspiradas no sempiterno ‘socialismo científico’.
Bolseiro de pós-doutoramento em Estudos Africanos, autor de O Ensino da História