Não se percebe o que levou o Governo a fazer este “não confinamento” perante números que já eram muito graves – desde 2 de Janeiro que Portugal é o país da UE com mais casos do que os mais afectados, como a Espanha, Itália e Alemanha (ver aqui e gráfico em baixo) – e face à perspetiva de colapso dos serviços de saúde, como se está a confirmar.
O primeiro-ministro pediu para não olharmos para as excepções. De facto, ironicamente, é mais fácil identificar o que, afinal, fecha, nesta espécie de confinamento. Resumindo, o que encerrou foram os restaurantes e cafés, os espectáculos e museus, os cabeleireiros e esteticistas, os ginásios e o comércio não alimentar. E mesmo este pode vender “ao postigo”. Nesta espécie de confinamento, as restrições à mobilidade em alguns concelhos são até inferiores às que existiam anteriormente.
Perante dados tão graves, como continuam a ser e se vê aqui, não se percebem as razões que levaram o Governo a tomar esta decisão minimalista, mas devem existir e resta-nos colocar hipóteses para a racionalizar. A necessidade de manter alguma mobilidade por causa das eleições presidenciais é uma hipótese forte e compreensível. A outra é a tentativa de se manter popular, não fazendo mais do que aquilo que as pessoas estão, neste momento, disponíveis para aceitar e precisando, por isso, das imagens de colapso do sistema de saúde para tomar medidas mais duras. E se esta é a razão, não se pode compreender. Um Governo tem de ter a coragem de fazer o que é melhor para o País, mesmo que isso ponha em causa sua popularidade.
Finalmente a hipótese económica e financeira, segundo a qual o Governo escolheu a versão minimalista de confinamento para reduzir o impacto na economia e nas contas públicas. Se é essa a razão, as contas podem estar mal feitas. O confinamento de “faz-de-conta”, como lhe chamou Manuel Carvalho no Público, tem uma elevada probabilidade de não ser eficaz, no sentido de não reduzir o número de novos casos. Como consequência, teremos um confinamento mais longo e com efeitos ainda mais gravosos na economia e, por essa via, atrasando a recuperação e colocando-nos perante o risco de todos os riscos, o de dessincronizarmos dos países europeus.
A perspectiva mais grave que se coloca a Portugal é não começar a recuperar economicamente ao mesmo tempo que a maioria dos países europeus. Quando os parceiros europeus estiverem a crescer, começará desde logo a colocar-se em cima da mesa a decisão de retirar os estímulos, especialmente de alterar a política monetária de juros baixos e compras de dívida pública. E esse será o momento em que, se Portugal não tiver já previsões de crescimento robusto, os investidores vão olhar para a dívida do país e duvidar da sua capacidade de a pagar. O resto da história já a conhecemos de 2011.
Se a preocupação está concentrada nas contas públicas, o raciocínio é exactamente o mesmo: o que não gastarmos agora gastaremos com juros no futuro pelo arrastamento da pandemia, por se manter mais tempo fechados negócios que têm sido as grandes vítimas e, o pior de tudo, por nos atrasarmos na recuperação.
Com o que se está a passar em Janeiro é muito elevada a probabilidade de termos menos crescimento do que o previsto, até pelo Banco de Portugal. O Governo fez o Orçamento com uma previsão de crescimento de 5,4% em 2021 enquanto o Banco de Portugal, em Dezembro, tem como cenário base 3,9% pressupondo que “as medidas de contenção serão mantidas ou restauradas até ao fim do primeiro trimestre de 2021 e aliviadas de forma gradual posteriormente”. Mas no seu “cenário severo”, em que prevê um crescimento de apenas 1,3%, o banco central pressupõe “uma maior dificuldade em controlar o crescimento de novos casos no final de 2020” e “um aumento de novas infecções no primeiro trimestre de 2021”. É exactamente isso que está a acontecer, restando-nos a esperança que não seja assim em todo o primeiro trimestre. Uma esperança vã, face a medidas tão minimalistas no controlo da pandemia que conduzirão a um confinamento mais longo.
E um confinamento longo é tudo aquilo que não devemos querer. Vale mais limitar a mobilidade de forma muito agressiva e ir abrindo a sociedade, do que fazer aquilo que estamos neste momento a fazer, com a elevada probabilidade de ter de fechar mais como, aliás, o disse neste domingo o Presidente da República. Nas entrelinhas do que afirmou Marcelo Rebelo de Sousa ficou a ideia de que terão de ser tomadas medidas mais restritivas.
Face àquilo que estamos a viver é preciso ainda perguntar onde estão as medidas sucessivamente anunciadas. Na primeira vaga vimos hospitais de campanha por todo o lado, decisões das autarquias de alugar hotéis para proteger famílias sem condições para isolar o elemento que estava infectado, anúncios de mobilização de funcionários púbicos e militares para fazer o rastreamento e ainda a famosa aplicação StayAwayCovid.
Neste momento, em que vivemos no precipício que a Itália experimentou na primeira vaga, não temos nada ou, pelo menos, parece que nada disso funciona. O hospital de campanha instalado na cidade universitária não funciona por falta de profissionais de saúde. É então legítimo concluir que todas aquelas imagens, de hospitais de campanha com governantes, que vimos na primeira vaga, não passavam de operações de “marketing” político. O mesmo se passa nos sucessivos anúncios de mobilização de pessoas para fazer rastreamento, que, como se percebeu na reunião do Infarmed, não está a ser realizado na esmagadora maioria dos casos.
Quanto às autarquias não se percebe o que andam a fazer. Poderiam ajudar no rastreamento, podiam apoiar de forma mais activa as famílias com elementos infestados. Podiam, mas não o fazem. Quem conhece a administração pública diz que tudo isso era uma impossibilidade, porque não se podem dar tarefas que vão além do que está definido na respectiva função – por exemplo, o motorista só conduz, recusa-se ou pode legitimamente recusar-se a ajudar a carregar o que quer que seja que esteja a transportar. Seria bom que esta pandemia levasse os responsáveis políticos a reflectirem e a adoptarem medidas que tornassem a administração pública mais flexível.
Aquilo a que assistimos é a uma dedicação sem limites dos técnicos de saúde, médicos, enfermeiros e auxiliares, que vivem nestes dias um pesadelo inimaginável. É a eles que devemos gratidão, que devemos ser mais responsáveis. Mas é também por eles que temos de ser mais exigentes com o Governo. Os sacrifícios que todos estão a fazer correm o risco de ser em vão, na saúde e nos negócios que tiveram de fechar, porque o Governo escolheu fazer um não confinamento.