No dia 6 de Abril, depois de se ter descoberto que houve uma reunião secreta entre membros do Governo, deputados do PS e a CEO da TAP, João Galamba declarou que: «O Ministro das Infraestruturas foi informado de que a TAP, na tarde do dia 16 de janeiro, tinha transmitido o seu interesse em participar na reunião com o Grupo Parlamentar do PS” e que “o ministro das Infraestruturas não se opôs à participação da TAP na reunião, agendada pela Área Governativa dos Assuntos Parlamentares para o dia 17 de janeiro, tendo o seu Gabinete procedido em conformidade».
Já no passado dia 29 de Abril, em conferência de imprensa depois do charivari no seu Ministério, Galamba evocou o que afinal terá dito a Christine Ourmières-Widener: «“Olhe, tenho um pedido do grupo parlamentar para uma reunião preparatória [da Comissão de Economia]. Não faz muito sentido eu ir à reunião preparatória, porque não sou eu que vou falar da TAP na reunião preparatória, quem vai falar da TAP na reunião preparatória é a senhora CEO, portanto, não sei se quiser participar… Já tive informação que havia interesse em falar consigo, se quiser participar, pode participar”. Ela aí não confirmou que queria participar, às 16 recebo uma mensagem do Frederico Pinheiro a dizer “A CEO quer participar na reunião. Pode?” E eu digo: “Pode”».
Face a isto, uma pessoa constataria a contradição entre as duas afirmações e pensaria: «Olha, o Galamba tinha dito que a CEO é que se ofereceu para ir à reunião, mas afinal ele é que a tinha desafiado e a “oferta” dela é, na verdade, uma resposta a aceitar um convite». Uma pessoa desprovida de imaginação, mas não os dirigentes do PS. Na quarta-feira passada, em conferência de imprensa pós-barafunda da não demissão de Galamba, o secretário-geral adjunto do PS, João Torres, disse isto: «A questão é que não há nenhuma contradição em relação a essa matéria. No que diz respeito a essa mesma reunião é verdade que a CEO da TAP, como está comprovado através de um suporte de mensagem, solicitou participar nessa mesma reunião e não existe nenhuma contradição factual, se lermos com rigor aquilo que havia sido escrito pelo ministro João Galamba até ao passado Sábado, entre a declaração que consta desse comunicado e aquilo que o ministro João Galamba revelou no passado Sábado».
João Torres não vê contradição entre a versão «a CEO pediu para ir à reunião» e a versão «gostava que fosse à reunião, faz sentido que vá à reunião, não quer ir? Lembre-se que é o seu patrão que está a sugerir!» Como Torres lê, lá está, com “rigor”, ambas são iguais. O que suscita em mim uma grande curiosidade sobre a vida sexual de João Torres.
Imaginemos que um patrão diz à secretária: «Ó Cláudia, organizámos aqui uma orgia no escritório, acho que faz sentido que a Cláudia venha. Não quer vir?» A Cláudia vai para casa, reflecte sobre o facto de ser o seu chefe que está a perguntar e, no dia seguinte, diz: «Ok, eu vou». Se João Torres for o tal superior hierárquico, deve ficar a pensar: «Olha, a Cláudia solicitou participar na suruba! É natural, ficam todas malucas aqui com o Torres!» Digamos que é uma noção peculiar de consentimento. Pelo sim, pelo não, as suas subalternas devem ter cautela ao pé do garanhão.
Esta habilidade com a interpretação, a leitura “rigorosa”, é fascinante. Afinal, Torres está certo: segundo o relato de Galamba, a CEO diz ao adjunto que quer ir. Tecnicamente, é assim. Só que com pouca ênfase em “técnica” e muita em “mente”. Se alguém me perguntar se quero que me cortem a mão esquerda ou a direita, sendo destro vou dizer que quero que me cortem a esquerda. No tribunal de João Torres, fui eu que pedi para ser maneta.
João Torres é um talento do PS. Infelizmente para si, não é o único. Pelo contrário, o partido está recheado de jovens intrujões de alto nível que competem com João Torres pelo papel de futuro Sócrates. Ou Medina. Ou Galamba. Enfim, João Torres tem rivais.
No Sábado, no programa Parlamento, da RTP3, Miguel Costa Matos, líder da JS, pediu meças à capacidade de João Torres de enganar através de factos verdadeiros. Transcrevo a interacção com a jornalista:
– É aceitável que até agora não se saiba quem accionou a intervenção do SIS?
– Eu penso que está tudo explicado de maneira muito clara. Existe um Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informação que emitiu um comunicado. Esse comunicado é absolutamente lapidar, recomendo a leitura. (…)
– O Sr. Deputado não está a responder à minha pergunta.
– Diga lá qual é a pergunta.
– A pergunta é: quem é que accionou o SIS e como é que se explica que o SIS tenha ido recuperar um computador, que supostamente é um trabalho de uma polícia?
– O SIS, o Conselho de Fiscalização disse que não realizou nenhuma operação de polícia, porque agiu de maneira voluntária, recolheu o computador na via pública (…) Ainda bem que fez esse trabalho.
– E fez a pedido de quem, Sr. Deputado?
– Penso que isso está devidamente esclarecido. Agora…
– Eu não tenho resposta para essa pergunta. O Sr. Deputado tem?
– Penso que todas as dúvidas que devam existir, felizmente existe um Conselho fiscalizador para aquilo que é uma entidade de facto com toda a sua gravidade e que possa ser devidamente questionado e que possa responder de forma livre.
Confrontado com uma questão que continua sem resposta – quem é que chamou o SIS? – Miguel Costa Matos atira com o relatório do Conselho de Fiscalização. Diz ele que esse documento confirma a legalidade da operação, como se nisso estivesse respondido quem pediu ao SIS para actuar. É como uma mãe perguntar: «Quem partiu o prato?» e a filha responder: «Mãe, toda a gente sabe que o prato era muito feio. Ninguém gostava. Isso responde à tua pergunta». Parecendo que não, saber quem chamou o SIS é uma informação importante, já que não cabe a membros do Governo accionar o SIS, como se fosse um Find My Iphone privado. O que vem a seguir? Pedir ao Ministério da Agricultura para mandar alguém tratar das hortenses da varanda de José Luís Carneiro?
Portanto, não só o relatório não contém essa informação, como a asserção de que a operação foi legal está por confirmar. Para já, mesmo que tenha sido, isso não invalida que a chamada do SIS tenha sido ilegítima. Depois, face às informações que entretanto se souberam, a legalidade da operação é duvidosa. O relatório diz: «Tendo em consideração os factos até ao momento disponíveis, assinala-se, em primeiro lugar, que não existem indícios que sustentem ter sido adoptada pelo SIS qualquer medida de polícia aquando da recuperação do computador em causa: tudo aponta no sentido de o computador ter sido entregue voluntariamente por quem o detinha, na via pública, portanto fora do contexto do seu domicílio, e sem recurso a qualquer meio coercivo ou legalmente vedado.»
Eu não sei o que é que o Conselho de Fiscalização entende por coerção, mas se me aparecesse um tipo do SIS a exigir que lhe entregasse o computador “a bem”, “senão” as coisas “complicavam-se”, eu assaltava uma Worten só para ter vários computadores para lhe entregar. Ainda por cima, parece que o agente secreto tinha menos de 1,70m. Ora, toda a gente sabe que homem pequenino ou é velhaco ou bailarino. Não havendo relato, por parte de Frederico Pinheiro, do agente ter efectuado um plié, um moonwalk ou uma daquelas coreografias do TikTok, quem é que se atreveria a desobedecer a um espião velhaco? Vi suficientes filmes de acção dos anos 80 para saber que não se deve desafiar alguém assim.
Costa Matos tem tanta vontade em não dizer quem é que chamou o SIS que, às tantas, perde a paciência e diz: «Por amor de Deus, vamos é responder aos problemas dos portugueses! Vamos falar de como podemos assegurar as creches gratuitas, melhorar os salários médios, conseguir melhorar ainda o nosso crescimento, que é o maior da zona euro mas que tem de ser ainda maior, para o nosso país poder pagar melhores salários aos jovens. Vamos falar de como podemos atrair investimento estrangeiro, de como podemos resolver os problemas das alterações climáticas, isso é que são problemas reais. É resolver o problema da seca, dos incêndios, dos portugueses que não conseguem pagar as contas ao final do mês. Agora, estarmos a fazer uma novela sobre quem é que chamou o SIS?»
Ou seja, o tema atrapalha tanto o PS que o deputado prefere desviar a atenção apontando para uma série de problemas que o Governo, há 8 anos no poder, não consegue resolver. «Eu sei lá quem é que chamou o SIS, pá! Estou mais preocupado com o estado lastimável em que estamos a deixar o país. Preocupa-me menos quem é que chamou o SIS do que quem é que qualquer dia chama a PSP para nos prender a todos no Rato!»
Há uns anos, António Costa fartou-se de usar o estribilho «palavra dada é palavra honrada». Entretanto, o PS adaptou-se ao poder e o slogan evoluiu. Agora é «palarva dada é palarva honrada». Com os socialistas, as palavras mudam de sentido como as larvas se transformam em borboletas. A CEO responder ao convite «queres vir à reunião?» com um «quero» passa a significar que ela é que se propôs participar. Alguém instruir o SIS para recuperar um computador metamorfoseia-se em alguém limitar-se a ligar ao SIS e informar que há um computador que era bom que fosse recuperado. Como, há umas semanas, o parecer jurídico se transformou em opiniões dos tipos da IGF naquele relatório em que nem ouviram a CEO. E «juridicamente blindada» afinal é «estou com uma fezada, é cá um palpite que tenho».
Há, no PS, uma fluidez da linguagem, uma capacidade de embrulhar a realidade, uma desfaçatez a negar evidências, uma gigantesca lata a responder a factos incómodos com petas avulsas, que me deixa nostálgico. Faz-me recordar com saudade a minha adolescência, quando contar uma patranha era mais fácil que dizer a verdade, porque a consequência era adiada, mesmo que apenas por umas horas. «O carro tem gasolina?», perguntava o meu irmão mais velho. «Sim», mentia eu, sabendo perfeitamente que o depósito estava quase vazio. Mas, se eu dissesse a verdade, ele ia gritar comigo, chamar-me irresponsável e obrigar-me, naquele preciso momento, a ir atestar o carro. Ao mentir, deixava-me em paz e eu podia continuar de pijama, espojado no sofá a ver televisão. Quando, no dia seguinte, nos voltássemos a encontrar, talvez ele estivesse mais calmo. E quando me perguntasse «Não disseste que o carro tinha gasolina, ó aldrabão?», eu diria «E tinha. Pouca, mas tinha. Tu não perguntaste quanta gasolina tinha, perguntaste se o carro tinha gasolina. E tinha ou não?» Com sorte, os meus pais estariam em casa e ele não me conseguiria bater. Entretanto, eu tinha podido acabar de ver o filme de espiões com aquele actor baixinho, porém velhaco. Valera a pena ou não?