O discurso político da maioria é que há um governo a olhar para o futuro e uma oposição presa ao passado. Como retórica política, até se pode desculpar: não há nada como criar ilusões para disfarçar a realidade. Mais discutível é a sua adopção por boa parte do comentariato. Até porque a principal actividade da actual maioria parlamentar tem sido a de “reverter” todas as (poucas) reformas promovidas pelo anterior executivo. Ora “reverter”, pode ler-se em qualquer dicionário, significa “voltar para o ponto de onde se partiu”, ou seja, voltar para trás, regressar ao passado.

Estamos pois perante uma das mais fantásticas girândolas propagandísticas dos últimos anos: voltar ao passado é olhar para o futuro; querer prosseguir o caminho das reformas é estar preso ao passado. Como Orwell ilustrou de forma genial no seu romance distópico 1984, em política o domínio da linguagem e dos termos utilizados é fundamental para limitar os termos do debate público e castrar formas de pensamento diferentes. Ora com esta “novilíngua” orwelliana da nova maioria estamos mesmo perante um caso típico de “duplopensamento”, isto é, estamos a tentar utilizar as palavras de formas totalmente opostas conforme os interesses do momento. Se em 1984 Guerra é Paz e Liberdade é Escravidão, no 2016 da geringonça Passado é Futuro e Reverter não é sinónimo de Recuar, antes de Avançar. A adopção tácita desta “novilíngua” permite mesmo que se diga, como disse o representante do PCP no final do Congresso do PSD, que os sociais-democratas foram derrotados nas eleições de 4 de Outubro, quando esses mesmo sociais-democratas venceram essas eleições e têm o maior grupo parlamentar da Assembleia (elegeram 89 deputados, quase seis vezes mais do que os 15 do PCP).

Eu compreendo que o facto de estarmos a viver uma situação inédita, tornada possível por uma coligação nunca antes constituída, pode criar a ilusão que é essa coligação que, só por si, determina o futuro, tudo o resto pertencendo ao passado. Na verdade trata-se de uma forma de pensar duplamente errada. Primeiro, porque ignora que, em democracia, podem e devem existir diferentes formas de definir o caminho a seguir pelo país, todas elas representando visões concorrentes do que deve ser o futuro. Depois, porque mesmo não existindo um sentido única na História, nem determinismos fatalistas (ao contrário do que pensam os marxistas), pensar o futuro deve ter sempre como base tentar perceber a realidade. Quando essa realidade é mascarada por um qualquer “duplopensamento” à medida das conveniências políticas de ocasião, então caminhamos muito depressa para o desastre.

Vamos então olhar para a realidade e para o que ela nos mostra. Este sábado o Expresso publicou um trabalho onde se mostrava, com base numa recolha de informação pedida ao INE, que há 20 anos que o rendimento dos mais novos está cair por comparação com o dos mais velhos. Considerando o período que vai de 1989 a 2009, o rendimento dos que têm menos de 30 anos caiu 18 pontos percentuais em relação à média nacional; no mesmo período de tempo, o rendimento dos que têm mais de 65 anos subiu 27 pontos percentuais. Pior do que Portugal, no que se refere à queda de rendimento dos mais novos por comparação com a média nacional, só a Itália.

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Estes dados não me surpreenderam. Há dois anos editei, com Helena Matos, um livro sobre a forma como Portugal estava e está a comprometer o presente e o futuro dos mais novos – “Este país não é para jovens” –, pelo que ao ler o Expresso só confirmei a percepção de que os que têm menos de 30 anos estão mesmo a ser prejudicados, e que mais prejudicados serão no futuro quando descobrirem que as suas futuras pensões também serão muito mais baixas, ou seja, que “a pobreza ameaça o futuro desta geração”, como disse a esse jornal Fernando Ribeiro Mendes.

O pensamento dominante tende a reagir a este tipo de revelações – que só são realmente revelações para quem anda de olhos voluntariamente vendados – defendendo subidas administrativas de salários (como o salário mínimo) e regimes laborais que contrariem a “precarização”. A verdade porém é que não se pagam salários mais elevados sem que se crie mais riqueza, nem se criam mais empregos sem que as empresas sejam capazes de competir nos mercados abertos do tempo da globalização. É por isso que há muito se fala, em toda a Europa, da necessidade de reformas do mercado de trabalho, reformas que a Alemanha e os países nórdicos já concretizaram no essencial, reformas que são violentamente combatidas na Europa do sul (ainda esta semana a França voltou a conhecer protestos gigantescos contra mudanças nas lei laborais promovidas por um governo que até é socialista).

Ora olhando para os dados do Expresso verificamos que o fosso entre mais novos e mais velhos é maior na Europa do Sul, e que a perda de rendimento dos mais novos é também muito mais acentuada a Sul. Mas quando vemos os números de um país como Alemanha, que levou por diante um conjunto de reformas corajosas na viragem do milénio, encontramos a menor diferença na evolução comparada dos rendimentos: os mais novos só perderam cinco pontos percentuais, tantos quantos ganharam os mais velhos.

As reformas realizadas na Alemanha não permitiram apenas que aquele país voltasse a ser competitivo, ou que tenha hoje uma das mais baixas taxas de desemprego na Europa: também ajudaram a uma maior justiça intergeracional. No entanto, mesmo face a estas evidências, os que andam sempre com a palavra “futuro” na boca são os mesmos que estão a reverter as poucas reformas dos últimos anos que iam no sentido das realizadas na Alemanha.

Mas há mais, e porventura ainda mais perturbador. Apesar de não faltarem estudos (incluindo os realizados pelo actual ministro das Finanças, Mário Centeno) a alertar para o perigo de subidas bruscas no salário mínimo poderem ter consequências negativas na criação de emprego, o anterior Governo descongelou o salário mínimo no final de 2014 e o actual fê-lo dar novo pulo. Teria sido necessário um milagre de aumento de produtividade para esses aumentos não se terem reflectido na evolução do emprego, e a verdade é que isso parece estar mesmo a acontecer.

Com base na minha própria recolha de dados nas estatísticas do INE confirmei aquilo que já se sabia – em Portugal a população empregada diminuiu até ao Verão de 2013, tendo vindo a aumentar desde essa data (e estou a utilizar os dados da população empregada para fugir à controvérsia sobre o número de desempregados e de emigrantes). Aquilo que não sabia, e dados que recolhi me mostraram, é que a criação de emprego a partir desse momento de viragem não se deu sempre ao mesmo ritmo. Utilizando como referência a média móvel da diferença entre criação e destruição de emprego nos últimos 12 meses, uma fórmula que permite evitar o efeito das variações sazonais do emprego, verifica-se que essa média móvel atinge um valor máximo em Setembro e Outubro de 2014 (nos 12 meses anteriores tinham-se criado 6,9 mil empregos por mês), e a partir daí esse indicador começa a cair. Um ano depois, em Outubro de 2015, já descera para 3,5 mil novos empregos por mês.

O que é que aconteceu em Outubro de 2014 que possa justificar esta desaceleração, esse novo ponto de viragem? Há uma hipótese de resposta que salta à vista: foi exactamente em Outubro de 2014 que entrou em vigor o primeiros destes dois aumentos do salário mínimo.

Como tivemos em Janeiro passado novo aumento do salário mínimo, temos de ver o que acontece daqui para a frente, mas devo dizer que os primeiros indicadores não são entusiasmantes. Habitualmente há menos pessoas empregadas nos meses de Janeiro e Fevereiro do que em Novembro e Dezembro, pelo que não vou ficar-me pelo mau resultado revelado pelos últimos números do INE, que nos dizem ter o país perdido 65 mil postos de trabalho entre Novembro de 2015 (quando este Governo entrou em funções) e Fevereiro de 2016. Isso seria demagógico. Fui por isso por outro caminho, comparando o que se passou nestes quatro meses com o que se passou em anos anteriores. Temos assim que o ano passado a média de perda de empregos nestes meses foi de 4,65 mil por mês e, este ano, esse valor saltou para 16,17 mil. Esperemos pelos próximos meses para ver se esta tendência se confirma, ou não, mas a verdade é que todos os últimos indicadores económicos não são positivos.

Apetece-me por isso, voltando a falar de passado e de futuro, citar Steen Jakobsen, economista-chefe do Saxo Bank, ontem entrevistado pelo Observador: “Já ouvi essa história de virar a página da austeridade. Boa sorte. Vejo este governo a falar numa viragem da “página da austeridade” na única altura em que Portugal se tornou competitivo como país. Agora querem recuar. Boa sorte. Vão voltar a cair em recessão. E vão incorrer em mais dívida e vão voltar a precisar de um perdão de dívida. O novo governo parece interessado em anular num ano o que se conseguiu em sete anos.”

É apenas mais um aviso. Sendo que os números que citei parecem reforçar a pertinência do aviso. Com a diferença que esses números são reais. Tão reais como um muro. E nós estamos a ir contra esse muro com o pé no acelerador.