Julgo que pertence a Herman José a expressão de que “a vida dos pobrezinhos é um mistério”. Às vezes penso que para muitos dos nossos governantes e altos funcionários, habituados a muitos anos de motorista e ordenança, a vida dos cidadãos comuns também deve ser um mistério. E um mistério insondável.
Não encontro mesmo outra explicação para a informação que a secretária de Estado da Justiça enviou ao Parlamento dando conta que os atrasos no atendimento para quem deseja tratar do Cartão do Cidadão se deviam ao facto de os utentes das lojas do cidadão terem o mau hábito de, “sistematicamente”, irem para a porta dos serviços “antes da abertura do atendimento ao público”. Bem sei que o Ministério depois fez mea culpa, mas como este não é o primeiro passo em falso de Anabela Pedroso – recordo-me que também anunciou, e depois desmentiu, que os cartões de cidadão iam deixar de indicar o sexo dos seus titulares (ou o “género”, para ser politicamente correcto), e que informou que ia ser possível ter o cartão do cidadão em cinco minutos, omitindo que isso só acontecia depois de esperar horas –, fico com a convicção de que, para alguns governantes, tudo o que sai dos seus esquemas mentais não existe, mesmo quando os seus esquemas mentais são pura ficção.
Dir-se-á: é uma excepção, foi uma gaffe, uma andorinha não faz a Primavera. Poderia concordar se não existisse um padrão – e esse padrão é quase sempre o de começar por negar a realidade. Quantos meses foram necessários para que se admitisse – e com relutância – que as cativações criam graves problemas de funcionamento nos serviços públicos? Quantas dezenas de reportagens tiveram de ser escritas ou passarem nas televisões para finalmente se admitir que havia problemas com o Cartão do Cidadão, os serviços do IMT, os inacreditáveis atrasos da Segurança Social? Quantos comboios foram suprimidos, cadeiras arrancadas, quantos motores tiveram de cair de andamento antes de se admitir que havia mesmo um problema de investimento nos transportes públicos e um ministro ser obrigado a pedir desculpa? Quantas notícias foram publicadas sobre a falta de médicos ou a situação de ruptura em serviços de urgência de hospitais do SNS até os ministérios da Saúde e das Finanças desbloquearem alguns (poucos) concursos para admissão de mais profissionais?
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