Uma característica patusca do português, que custa a quem o aprende muitos erros, é a diferença entre o verbo ‘ser’ e o verbo ‘estar.’ As pessoas costumam estar em Barcelos, ou contentes, e ser arquitectos, ou corcundas. Aos nativos a diferença parece evidente: o que alguma coisa ou alguém é parece-lhes menos transitório que o que, ou como, ou onde, meramente alguém está. Há outras línguas porém em que só existe um verbo para as duas tarefas; não é seguro que nelas ser corcunda possa ser uma condição temporária.

Bernardim Ribeiro (1482?-1552?) é o autor de um poema maravilhoso onde imagina que em alturas especiais, quando os nossos colegas de língua diriam ‘eu sou,’ é preferível dizer ‘eu estou,’ e isto apesar de a gramática recomendar o contrário. É um poema que pode ser facilmente encontrado por aí: começa com “Antre mim mesmo e mim” e tem só duas estrofes, cada uma com sete versos (há realmente três versos antes da primeira estrofe, mas são um mote para aquilo que ele propriamente escreveu).

Na segunda estrofe Bernardim Ribeiro resume a sua situação: “De mim me sou feito alheio.” Muitos conhecerão este problema na versão de poetas mais recentes, como Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. Não é no entanto um problema do século XX, visto que o poema de Bernardim foi escrito no princípio do século XVI. “Sou feito” parece indicar que Bernardino nem sempre foi aquilo que é; e que se terá tornado naquilo que é. Como é que isto terá acontecido?

O poema tinha começado com a pré-história da situação: “Uns tempos com grand’engano / vivi eu mesmo comigo.” Nesse começo, Bernardim Ribeiro compara quem vive consigo mesmo a quem está casado consigo próprio. Quem se casa consigo, casa-se por engano; e quando percebe o engano torna-se vulnerável a alterações de estado civil. Bernardim não explica exactamente o que causou as alterações; refere-se a “um mal derramado / que por mal grande me veio.” Como porém um mal é um mal, nada melhorou. Podemos portanto dizer que neste poema o problema inicial não é resolvido. Quem vive consigo mesmo vive enganado; e só reconhece os seus enganos quem já não está enganado; mas quem não está enganado está doente: foi contaminado por “um mal derramado.”

O poema indica essa nova condição permanente, com a qual a pequena história conclui, através de um muito ligeiro entorse gramatical, quase imperceptível. É com esse pingo de gramática que o poema acaba: “Nova dor, novo receio / foi este que me tomou, /assim me tem, assim estou.” Bernardim Ribeiro não acha apenas que foi capturado por males, dores e receios; passou também a usar “assim estou” como sinónimo de ‘assim sou.’ Terá por isso, apesar da língua portuguesa, chegado à conclusão de que neste mundo o que somos é o que estamos: estamos doentes, estamos corcundas, estamos arquitectos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR