Em 2022, o ordenado médio em Portugal está pouco acima dos 1000 euros líquidos mensais (1042 euros por mês de acordo com a Pordata), mesmo após os sucessivos aumentos do salário mínimo nacional nos últimos 20 anos. A diferença entre o ordenado mínimo e o médio é cada vez mais pequena, significando que há cada vez mais trabalhadores a receber ordenados mínimos, ou muito próximos dele. Pondo mais sal na ferida, somos um dos países europeus que menos cresceu nos últimos 20 anos, e andamos à deriva na busca desse crescimento que nunca conseguimos alcançar.

Existem quatro países na Europa cujo PIB em 2021 foi inferior ao de 2019 – o que significa que não conseguiram recuperar a economia existente antes da pandemia COVID19. Conseguimos adivinhar quais foram? Não será preciso muita dedução porque são os suspeitos do costume, os novos PIGS: Portugal, Itália, Grécia e Espanha. Alguns analistas justificam isto frequentemente com o facto de os países do leste europeu terem começado de um patamar inferior ao português quando entraram na União Europeia, partindo do pressuposto de que é mais fácil crescer a partir de baixo. Omitem convenientemente, no entanto, que os países mais ricos da União Europeia continuam a crescer sem a mesma dificuldade dos PIGS. Resumindo, estamos cada vez mais longe dos países mais ricos da Europa, e a ser apanhados pelos países mais pobres aos poucos e poucos. Qualquer que seja o prisma, Portugal está a caminhar para ficar na cauda da Europa. Pior que nós só a Grécia.

Assim sendo, o que pretendem fazer os partidos políticos? Há anos que estes temas se discutem, quer seja na bancada da direita, quer da esquerda, e falamos de muitas soluções e problemas, mas acabamos por nunca tomar nenhuma medida com receio de ofender os direitos instalados, ficando tudo na mesma.

Bem, tudo não. O investimento privado de empresas de tecnologias de informação (TI) está a mudar estruturalmente o país, especialmente os empregos e os ordenados das gerações mais novas que estão a entrar nesta área. Onde estão os recém-licenciados a encontrar oportunidades laborais? E as pessoas com cursos-técnicos? Uma grande maioria está a ser absorvida pela TI e pelo mundo remote que estes tipos de trabalho permitem.

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Cursos de três meses de programação transformam empregados de hotelaria e de restauração, com ordenados mínimos e horários exigentes, em programadores, testers, analistas, etc., que vão duas a três vezes por semana ao escritório e recebem ordenados à volta de 900 a 1000 euros ao fim de seis a doze meses de trabalho.

Quantos mestres e licenciados de engenharia biomédica estão a trabalhar na saúde, o seu sonho de menino e menina? E quantos engenheiros civis estão a trabalhar em obras de construção? E psicólogos a dar consultas? Cada vez menos… São programadores, Product Owners, Data Engineers, Scrum Master’s, Talent Specialists (o que quer que estes cargos impliquem). Cargos que requerem conhecimentos mais básicos de programação são preenchidos por profissionais de outras áreas. Através de uma rápida pesquisa no LinkedIn podemos encontrar dezenas e dezenas de ofertas de trabalho nestas áreas.

Um médico recém-especialista de áreas hospitalares, quer ele seja cirurgião, oncologista, ou de medicina interna, ganha um salário líquido base de cerca de 1700 euros no “melhor sistema nacional de saúde (SNS) do mundo”, como os políticos portugueses gostam de o descrever. Estes trabalhadores altamente qualificados vêm os seus amigos de infância, que muitas vezes tiveram notas inferiores no ensino secundário, a ganhar o mesmo que eles, ou até mais, a trabalhar full remote ou a ir uma vez por semana ao escritório. E ainda têm o maior bónus de todos – não estão nas mãos da Sra. Ministra Marta Temido, que previamente os acusou de serem pouco resilientes. Os profissionais de saúde do SNS ainda não se esqueceram que o prémio pelo trabalho e a dedicação durante a fase inicial da pandemia COVID19 foi a final da Liga dos Campeões em Portugal – palavras e cortesia do Sr. Primeiro Ministro António Costa. Porque terão os melhores estudantes, atualmente no ensino secundário, de escolher um percurso académico em medicina se os trabalhos em TI são mais valorizados, tanto a nível salarial como de qualidade de vida, trabalham menos horas e têm maior potencial de progressão de carreira?

E mesmo quem não quer trabalhar em TI, acaba muitas vezes por enveredar por essa carreira porque não há muitas alternativas viáveis em Portugal. A título de exemplo, duas empresas da banca francesa estão a deslocar os polos de TI de França para Portugal de forma a reduzirem custos salariais. Um ordenado anual líquido de 80.000 euros, ou mais, em França, transforma-se num ordenado anual líquido de 50.000 euros em Portugal para perfis mais seniores (uma poupança de 37.5%). Estes ordenados são incomuns em Portugal, e bastante mais altos que a média, ainda mais para pessoas com cerca de cinco e seis anos de experiência numa determinada tecnologia, seja ela backend ou frontend.

O crescimento salarial em TI nos últimos cinco anos ronda os 20% por ano, bastante superior à inflação que nos afeta diariamente. A pandemia COVID19 trouxe o trabalho remote, que veio para ficar, o que faz aumentar ainda mais a procura e garantir que os ordenados em TI continuam a subir.

Como é que um recém-licenciado pode não trabalhar nesta área quando as vantagens são impossíveis de ignorar. Em contrapartida, arquitetos, enfermeiros e psicólogos com cinco anos de experiência tendem a ganhar abaixo de 900 euros/mês, e em regimes muito mais precários.

À medida que mais empresas estrangeiras vêm para Portugal, a balança comercial pende bastante mais para o aumento da procura, porque a oferta demora a ser criada. Os ordenados base estrangeiros fazem subir drasticamente os ordenados em Portugal. Para colmatar esta enorme falta de oferta, as empresas de TI estão a tentar recrutar no Brasil e em outros países com ordenados mais baixos (a galinha de ovos de ouro é o Brasil devido à dimensão da sua população e adaptação à língua portuguesa). E não param de vir empresas de TI estrangeiras para Portugal, a canibalizarem os trabalhadores umas das outras. Salário e número de idas ao escritório são os fatores de mudança. Se a empresa X não der, outra haverá de dar as condições pretendidas.

Com esta realidade, como pode um médico continuar a trabalhar em Portugal, quando observa esta realidade nos seus amigos e familiares? Crescimento, gera crescimento. Se há empregos cuja dedicação e trabalho são valorizados, porque ficarei eu a trabalhar em Portugal nestas condições? Este aumento salarial é um dos fatores principais associado ao crescimento do preço de habitação em Lisboa e no Porto. Estes milhares de trabalhadores têm ordenados que permitem pagar prestações bastantes superiores à média, e assim inflacionar o mercado.

A necessidade de pessoas em TI é de tal forma grande, que cursos de três meses arranjam emprego quase garantido. Basta serem pessoas trabalhadoras e ao fim de seis meses já estão a mudar de trabalho para postos com salários mais competitivos e condições de trabalhos mais atrativas.

As empresas fora da realidade do TI, para atrair e reter os profissionais desta geração terão de aumentar os ordenados e as condições de trabalho se querem reduzir a sangria de pessoas qualificadas.

Durante os anos 60, nos Países Baixos, ocorreu um fenómeno semelhante com implicações que podem espelhar o que estamos a viver de momento em Portugal com o crescimento da área TI. A “Dutch Disease” teve efeitos dramáticos na economia neerlandesa: após serem descobertas reservas de gás natural, as empresas fora do ramo energético perderam competitividade porque não conseguiram acompanhar os ordenados das empresas energéticas. O mesmo está a acontecer em Portugal debaixo dos nossos narizes.

E enquanto isto acontece em Portugal, os partidos portugueses estão a discutir os mesmos assuntos dos últimos 20 anos. Temos os políticos que merecemos… e os que elegemos.