A Superliga Europeia de futebol nasceu, morreu e foi um fiasco, mas nesses dois dias de existência deu um contributo relevante: uniu muita gente à volta da indispensabilidade do mérito. Ou seja, gerou-se o consenso que o modelo proposto de Superliga, ao atribuir um tratamento desigual entre clubes com lugar cativo e outros clubes que dependeriam do mérito, era insustentável e perverso. Afinal, se os vencedores estiverem definidos à partida, qual é o objectivo de jogar? A crítica é certeira e razoável. Ora, o lado trágico desta história, contudo, não é a “ganância” com que tantos acusam, mas sim que essa paixão pelo mérito esteja acantonada ao desporto. Isto, porque esse modelo insustentável e perverso da Superliga, onde os vencedores estão definidos à partida, já existe em Portugal — na política, na administração pública, nas empresas públicas, mas também na ausência de igualdade de oportunidades na educação ou na saúde. E isto não gera um décimo da indignação que esta semana ouvimos sobre o futebol, em que toda a gente foi a correr pronunciar-se (em vez dos tradicionais silêncios tácticos).

O mundo do futebol profissional tem inúmeros vícios, que tempera com uma enorme virtude: não distingue cor da pele, nacionalidade, origens sociais, religião, orientação sexual, percurso de vida ou riqueza material. É, nesse sentido, uma indústria verdadeiramente democrática. Olha-se, por exemplo, para a selecção portuguesa de futebol e observa-se essa diversidade, que tem como elemento comum o mérito desportivo. Há miúdos brancos, pretos, mulatos. Há miúdos que nasceram pobres e outros que cresceram numa família de classe média. O que ali não há, são as cunhas, os favores ou os padrinhos. É tudo muito mais simples e transparente: ou se joga à bola, ou muda-se de vida.

O ponto-chave na ideia de mérito desportivo é a rejeição dos privilégios de nascimento ou de identidade. Não há espaço para predestinados. Sim, há quem tenha talento natural para jogar futebol ou para uma outra modalidade. Mas a distância entre o sucesso e o insucesso não depende do talento, mas sim do trabalho, da dedicação diária, da disciplina, do desempenho obtido. Trabalho de uma vida, pois muitos dos atletas que hoje têm contratos profissionais foram recrutados novíssimos pelos clubes, que lhes deram os meios, os treinadores e as condições materiais para que evoluíssem. E isso vale para todos, porque as desigualdades sociais à entrada do desporto são esbatidas pelo enquadramento dos clubes e federações: em modalidades como o futebol, um miúdo rico ou um miúdo pobre tem as mesmas condições para vingar.

Ora, nada deste retrato tem adesão à realidade portuguesa fora dos pavilhões e dos estádios — onde a ideia de mérito e de ascensão social pelo trabalho surge diariamente derrotada pelas publicações em Diário da República. Na vida profissional, a administração pública está colonizada por nomeações partidárias (onde o cartão de militância ao PS é o melhor currículo para se chegar a alto-quadro do Estado) e as famílias ou redes de contacto ainda definem as melhores oportunidades. Nos concursos públicos, os fundos comunitários servem de banquete para as empresas dos amigos (algumas criadas dias antes para esse efeito). Na educação, nascer pobre continua a definir percursos escolares e tolera-se levianamente que haja tantas crianças em contextos desfavorecidos deixadas para trás, travadas no seu potencial de aprendizagem e de ascensão social (mas, depois, insiste-se nas quotas raciais como “solução”). Na saúde, a pandemia expôs um problema antigo: como o congestionamento do SNS é terrivelmente penalizador para aqueles que não têm acesso a cuidados no privado.

Ao contrário do que todos defendem para as competições desportivas, o Portugal real continua a ser um país de lugares cativos, onde o mérito é subalterno do acesso privilegiado aos poderes políticos e económicos — os verdadeiros definidores do sucesso ou do insucesso. Entenda-se: isso nunca impedirá os mais obstinados de concretizar as suas ambições de vida. Mas fará deles a excepção, em vez de a regra, num sistema onde os incentivos estão invertidos. Se tivéssemos a capacidade de nos revoltarmos com isso, nem que fosse apenas com um pingo da indignação que canalizamos para o futebol, Portugal seria um país melhor.

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