Passou-se uma semana desde a festa de campeão do Sporting. Em contexto de pandemia, madrugada adentro, centenas de milhares de adeptos concentraram-se em zonas da capital, numa noite cujas imagens comprovam uma falha total das autoridades — que autorizaram o desfile de um autocarro (mantendo multidões na rua à espera), que permitiram ecrãs gigantes para fan zones junto ao estádio de Alvalade (promovendo ajuntamentos), que anunciaram regras que ninguém respeitou (por exemplo, a proibição do consumo de álcool na rua). Em inglês, dir-se-ia que foi um “falhanço épico”. Mas, em politiquês de Portugal, a expressão traduz-se por “um azar do caraças”, em virtude do qual ninguém é responsável, ninguém assume erros e ninguém se demite.
Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), reconheceu que o contexto era muito difícil e que “houve várias coisas que não correram bem”. Contudo, surpresa!, esclarece que nenhuma foi da sua responsabilidade, porque o município “não tem nenhum poder de autorizar manifestações”. A quem competia, então? Ao governo e à PSP. Mas o governo sacode responsabilidades: o primeiro-ministro garante que não “vai atirar pedras a ninguém”, mas, porque alguém tem de cair sobre a espada, lá informa que abriu um inquérito à actuação da PSP na festa sportinguista. Parece que a fava saiu à polícia, até porque Eduardo Cabrita, com a tutela da Administração Interna e formalmente o principal responsável, informou que estava ocupado a jantar com o seu homólogo esloveno e que isto não era nada com ele. Mas, lá está, a PSP defende-se, argumentando que enviou pareceres negativos por e-mail e apresentou alternativas para a organização da festa. Chatice: ninguém quis aceitar as alternativas e os e-mails andaram perdidos na CML. E como não há forma de Fernando Medina sair bem desta, mais vale sentenciar a discussão propondo um consenso: a solução correu mal, mas “foi melhor do que não fazer nada”. Horas e horas em reuniões de planeamento, incluindo na véspera e ainda sem decisões fechadas, para chegarmos a isto.
Ora, perante o espectáculo, o que aprende um cidadão? A lição desdobra-se em duas partes. Portugal tem os melhores políticos do mundo: homens e mulheres dedicados que não cometem erros, não vacilam na hora de decidir, não são tentados por más intenções que os desviem do serviço público. Mas Portugal terá também os políticos mais azarados do mundo: as coisas correm tantas vezes mal e sempre devido a factores externos imprevisíveis — o e-mail extraviado, a agenda do ministro que já estava preenchida, o clima que não ajudou (devia ter chovido a potes), o comportamento “irresponsável” da população. Com azares destes, não há solução que subsista.
Aliás, correcção: se calhar há solução — planear melhor. E, porque ninguém quer aparecer duas vezes a fazer má figura, geralmente à segunda raramente há imprevistos que furem os planos. Ontem foi a última jornada do campeonato de futebol e, para evitar concentrações de adeptos sportinguistas, a polícia cercou o estádio de Alvalade e encerrou o acesso a uma dúzia de ruas. Não houve fan zones, com ecrãs a transmitir o jogo junto às sedes das claques. Não houve ajuntamentos significativos de adeptos. Não houve problemas. Porquê? Porque houve quem fizesse bem o seu trabalho. Afinal, é possível.
Desta vez, foi com os festejos do Sporting. Mas o enredo é conhecido e a culpa acaba sempre sem dono — na gestão da pandemia, na resposta aos incêndios, no caso de Tancos, na condução de várias políticas públicas sectoriais que fracassaram. Sim, já se sabe que a impunidade apodrece a confiança da população nas instituições democráticas. Mas creio termos chegado agora a um nível ainda mais básico do problema. É que esta rotina narrativa, que retira do escrutínio os erros dos decisores políticos, assenta no pressuposto de que a população é estúpida o suficiente para acreditar na sua inabalável competência — ou, pelo menos, inerte o suficiente para não reagir e indignar-se. Se calhar, é mesmo assim. Mas triste o país e pobre a democracia que assenta em pressupostos que, em vez de almejar ao melhor, nos condenam à mediocridade.