Na era digital em que vivemos, o software está cada vez mais integrado nos nossos cuidados de saúde e bem-estar. Desde aplicações móveis que nos ajudam a monitorizar a nossa dieta, nível de atividade física e mesmo sintomas de doenças, até ao software usado pelos médicos, a saúde experienciou uma verdadeira revolução digital. Mas quem assegura a qualidade e segurança desse software quando usado no contexto de saúde?

Em geral, as aplicações que usamos não têm regras específicas antes de serem disponibilizadas no mercado. No entanto, quando o software tem a capacidade de influenciar a prática médica, mesmo se for utilizado pelos próprios pacientes para apoiar na prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças, este é considerado um dispositivo médico, tal como cadeiras de rodas ou um aparelho de raio-X. Na União Europeia, esses dispositivos estão regulados por regulamentos europeus que requerem seguir um processo de conformidade para assegurar que funcionam e garantir a segurança dos pacientes e de quem os utiliza.

Tal como outras leis, este regulamento resulta no que se designa de marcação CE, que indica que certo produto está em conformidade com as leis europeias. Pode passar despercebida aos olhos de muitos, mas por exemplo, todos os dispositivos eletrónicos têm esta marcação antes de entrar no mercado, para garantir a sua segurança. Durante a pandemia já nos habituamos às notícias de testes covid-19 sem marcação CE vindos de outras regiões, e cuja qualidade não podia ser confiável. Aliás, estes dispositivos, quando de maior risco, precisam de avaliação por entidades terceiras independentes.

O leitor pode, por exemplo, encontrar uma marcação CE nos brinquedos vendidos na Europa, normalmente com um número que indica qual a entidade independente que validou que os mesmos cumprem com os requisitos para que os brinquedos sejam seguros para as nossas crianças.

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Com uma crescente presença de software em mais áreas da saúde, a legislação tem acompanhado a atenção aos riscos crescentes associados a esta tecnologia. Estes produtos digitais apenas podem ser usados na prática clínica se tiver havido uma análise de risco para minimizar ao máximo eventuais falhas. Situações como erros de software que levaram à exposição a doses de radiação acima do esperado, ataques informáticos que poderiam alterar fórmulas de cálculo de dosagens de medicamentos, ou ferramentas de apoio à decisão médica que induzem em diagnósticos ou tratamentos errados já aconteceram, e danos piores foram evitados quando as empresas tinham sistema que garantia a qualidade conforme exige a lei europeia.

Todos nós – desde profissionais de saúde, pacientes à comunidade em geral – temos um papel a desempenhar na exigência de padrões elevados no software que usamos em saúde. Os avanços no desenvolvimento tecnológico digital trouxeram incontáveis benefícios para a medicina, desde diagnósticos mais precisos, à gestão mais eficiente nos nossos serviços de saúde. Têm o poder de melhorar a qualidade de vida de milhões de pacientes, prestando apoio na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças.

Mas a revolução digital na saúde também requer uma grande responsabilidade. Precisamos de garantir que não se facilita, e confiar que o software não pode também levar ao erro médico, levar-nos a tomar ações que acabam por piorar a nossa saúde. Com o crescimento de soluções com algoritmos cada vez mais complexos, ou mesmo Inteligência Artificial, torna-se praticamente impossível para uma pessoa sozinha, ou mesmo um profissional de saúde validar a qualidade e segurança do software. Por isso é fundamental o papel das regras e entidades reguladoras, que em nome de todos nós verificam os produtos que usamos. E isso passa por exigir o uso de produtos cuja qualidade e segurança foram devidamente validadas, porque no fim, ao não o fazer, assumimos a responsabilidade do que possa acontecer.

Em Portugal ainda é comum facilitar-se, e acreditar cegamente em vários produtos que são usados nos cuidados da nossa saúde, à margem da lei. Segurança e qualidade não são inimigas da inovação, e é da responsabilidade de todos garantir que o software usado em saúde seja seguro, eficaz e capaz de explorar todo o seu potencial como pretendemos. Ao adotarmos uma abordagem equilibrada, podemos fomentar um futuro onde a tecnologia e a medicina trabalhem juntas para o benefício de todos nós.

Célia Cruz, Fundadora e Chief Regulatory Affairs Officer da Complear.

O Observador associa-se à comunidade Portuguese Women in Tech para dar voz às mulheres que compõe o ecossistema tecnológico português. O artigo representa a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da comunidade.