Tendo em conta a situação tensa que se vive na região da fronteira entre a Rússia e a Ucrânia e nas relações entre o Kremlin e o mundo ocidental, esperava-se que o dirigente russo Vladimir Putin se debruçasse atentamente sobre a política internacional na sua mensagem anual ao país, mas ele decidiu concentrar-se nos problemas internos e nas reformas a realizar no período pós-pandemia.

Deste modo, Putin quis enviar duas mensagens ao povo russo e ao mundo.

A primeira, que o regime do Kremlin se preocupa principalmente com a situação dos cidadãos e, neste campo, o discurso de Putin pouco diverge de intervenções semelhantes dos dirigentes comunistas na União Soviética. Resumindo: as coisas não correram mal durante a pandemia, melhor do que nos países do Ocidente, e perante o povo russo abre-se um futuro radiante. A quantidade de promessas, em geral, e ofertas de subsídios às mães e crianças, em particular, não diminui.

Na segunda, o dirigente russo garantiu aos seus súbditos “paz e segurança” no plano internacional, sublinhando que os organizadores de provocações contra os interesses vitais da segurança da Rússia “irão arrepender-se pelo que fizeram como não se arrependeram há muito”. Além disso, Putin chama a si o direito de definir as “linhas vermelhas” que ninguém ousará ultrapassar em relação à Rússia.

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Como exemplo da ingerência dos países ocidentais nos assuntos internos de países da zona de influência russa e, indiretamente, na própria Rússia, o Putin deu o exemplo da “tentativa de golpe de Estado na Bielorrússia” e de “assassinato do presidente Lukachenko”. Trata-se de um caso típico de imitação da propaganda estalinista, quando a polícia política, por ordem dos dirigentes comunistas, inventava golpes de Estado e espiões estrangeiros para justificar as ondas de repressão. Há problemas mais importantes no campo internacional do que a farsa organizada pelos agentes do KGB bielorrusso.

Putin não pronunciou, porém, uma única palavra sobre o conflito em torno da Ucrânia nem sobre a concentração de tropas russas na fronteira com esse país vizinho, mas deixou um aviso aos dirigentes ucranianos e aos seus aliados da NATO:  que o seu país renova constantemente os armamentos das forças armadas, nomeadamente o nuclear, e voltou a enumerar pelo nome os mísseis mais modernos: “Kinjal”, “Kalibr”, “Tzirkon”, “Avangard”, “Peresvet”, “Sarmat”, “Burevestnik” e “Posseidon”.

A conclusão também não constituiu surpresa: “Precisamente como líder na criação de sistemas combativos da nova geração, no desenvolvimento das forças nucleares modernas, a Rússia volta a propor insistentemente aos parceiros discutir as questões ligadas ao armamento estratégico, à garantia da estabilidade global”. Comparando este discurso de Putin com as declarações dos últimos dias de Serguei Choigu, ministro da Defesa, e de Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros, podemos concluir que os últimos dois são “falcões” em comparação com a “pomba da paz” que discursou à nação.

Escusado seria esperar que o autocrata russo recordasse o nome de Alexey Navalny, um dos principais dirigentes da oposição, actualmente em greve de fome na prisão. A julgar pela forma humilhante como está a ser tratado, Putin nada irá fazer para que esse político não morra na prisão.

A ditadura, aliás, não esconde que está a aumentar a repressão com vista a liquidar a Fundação de Combate à Corrupção e outras organizações ligadas a Navalny e à oposição, com o argumento de que se tratam de “organizações terroristas, que têm como objectivo desestabilizar a situação interna na Rússia”.

Vladimir Putin tenta neutralizar a oposição extraparlamentar, a fim de garantir os 80% dos votos ao Partido “Rússia Unida” nas eleições parlamentares no Outono. Porém, o descontentamento no país é uma realidade. Após o discurso de Vladimir Putin à nação, milhares de pessoas saíram à rua em numerosas cidades russas a fim de exigirem a libertação de Navalny, o acesso do dirigente da oposição a médicos independentes e contra a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. As medidas repressivas, nomeadamente a presença de milhares de “cosmonautas” (agentes da polícia de choque russa), não foram suficientes para amedrontar os manifestantes, a maioria dos quais eram jovens.

A polícia fez centenas de detidos na véspera e durante as manifestações, mas a onda de protesto promete aumentar e só os apoiantes cegos do ditador russo continuam a acreditar que os protestos são obra do “Ocidente”, da “CIA”, etc. Mas há um número crescente de pessoas descontentes com a política de Putin e o seu regime corrupto e agressivo.