Em artigo de 1956, W. B. Gallie cunhou a expressão “conceito essencialmente contestado” para se referir aos termos sobre os quais não é possível chegar a consenso quanto ao seu sentido ou concretização. É uma expressão que se aplica bem a conceitos como justiça ou liberdade, cujo sentido depende de quem os profere – justiça e liberdade não significam o mesmo para um anarcocapitalista e um comunista, embora ambos estejam dispostos a usar as mesmas palavras. O termo democracia pode também ser entendido como um conceito essencialmente contestado na medida em que a sua concretização convoca propostas teóricas geralmente irreconciliáveis. É neste sentido que falamos em democracia dos antigos e democracia moderna, mas também distinguimos democracia liberal de democracia participativa ou deliberativa.

Convém, por essa razão, escolher cuidadosamente o vocabulário que usamos e é nesse sentido que devemos designar os sistemas democráticos ocidentais contemporâneos como democracias liberais. Este regime político específico nasce com a modernidade, conciliando os ideais de liberdade individual de uma certa tradição contratualista com os valores que procuram recuperar a soberania popular. Ao fazê-lo, não se confunde com a democracia dos antigos, designadamente ateniense, pois aquela conciliação é conseguida com um mecanismo que era estranho aos gregos: o mecanismo de representação.

A democracia moderna é, então, representativa, o mesmo é dizer que a participação dos cidadãos se realiza na escolha dos seus representantes – e serão os representantes a assumir a mais importante de todas as tarefas políticas: a de legislar. O Parlamento surge, assim, como o símbolo da democracia moderna, pois é nesse fórum que deve ocorrer a discussão política por excelência, sujeitando ao combate de palavras, argumentos e ideias as propostas políticas do país e exercendo o devido escrutínio político. E ao substituir a força e a violência pela troca de argumentos, a instituição representativa surge-nos como elemento fundamental do património civilizacional moderno.

Desta forma, o cerne da democracia liberal não se encontra tanto no facto de haver um governo escolhido pela maioria da população mas em traduzir-se num conjunto de regras institucionais que remetem a sua fonte de legitimidade para o Parlamento. É, portanto, este o alvo de ataque de todos os posicionamentos que recusam os princípios liberais, como as formas políticas autoritárias que marcaram o período entre guerras ou os regimes comunistas subsequentes. Foi também o que aconteceu em Portugal: em resposta ao caos do sistema parlamentar da I República, Salazar e Marcello Caetano recusavam que a legitimidade política residisse no Parlamento.

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Com o final da segunda guerra (entre nós, mais tarde), o sistema de democracia representativa consolidou-se e viveu anos de esplendor, muito em função do crescimento económico da maior parte da Europa durante esse período. Mas as últimas décadas têm registado manifestações consistentes de crise. A participação eleitoral começou a diminuir nas democracias mais amadurecidas e o corroer da confiança política revelou um curioso paradoxo: à medida que fomos passando de uma sociedade de deferência para uma sociedade mais igualitária, e os nossos parlamentos foram sendo ocupados por “pessoas comuns”, o sentimento de representação e confiança por parte dos cidadãos diminuiu. Em certo sentido, parece que a ideia de igualdade social é incompatível com o espírito da representação. E esse sentimento vem sendo reforçado pela popularização da tecnologia digital, que, ao aproximar o cidadão do poder político, dilui a necessidade de representação.

A introdução de reformas que alguns sistemas foram promovendo, com propostas mais participativas, não obteve o resultado desejado: pensemos no referendo sobre o Brexit que, ao invés de aproximar os cidadãos do processo político e harmonizar essa fonte de legitimidade com a parlamentar, gerou uma enorme divisão social e caos parlamentar. E nos últimos anos assistimos ao deflagrar de fenómenos populistas que assentam na crítica à representação e na proposta de um líder forte que permita uma ligação direta ao povo.

Estes são alguns dos sintomas de um fenómeno reconhecível: a democracia liberal está em crise e tem crescido o entusiasmo em torno de democracias iliberais (expressão cunhada por Fareed Zakaria em 1997 e aproveitada por Viktor Orbán para caracterizar o seu modelo político), com expressões diferentes em cada contexto nacional. Em Portugal, algumas dessas manifestações também se vão sentindo, com o crescimento do espaço iliberal à esquerda e à direita. Mas não deixa de ser curioso que uma das figuras que melhor represente o momento de crise do regime liberal se encontre na presidência do PSD. É a sua desconfiança permanente em relação aos meios de comunicação social e o sistema de justiça; é a falta de entusiasmo em relação ao lugar de deputado; são as propostas de alteração ao funcionamento parlamentar, desvalorizando os debates com o Governo e a sua função de escrutínio político. É também a dificuldade em colocar o PSD no tabuleiro ideológico tradicional que opõe o liberalismo ao socialismo: o espaço liberal está em queda e o presidente do PSD não pretende lutar por ele. Mas também se encontra na concordância com António Costa de que este não é o momento para discutir a democraticidade dos regimes europeus.

Rui Rio revela-se, assim, filho do seu tempo. E este é o tempo de desprezo pela instituição representativa e de crise do paradigma liberal.