Graças ao papel dos úteis, a começar por esse Grande Útil que é o PR e acabando na anedota útil de Rui Rio que coloca cartazes a pedir que lhe telefonem a dar ideias, Portugal desliza num plano inclinado que o afasta do crescimento económico, o torna menos democrático e o faz cativo da oligarquia. Esta semana, o sagrado direito à greve tornou-se no sagrado direito restrito aos devotos com o credo socialista na boca; o PS entrou na fase da cabala desenvolvendo teorias da conspiração sobre o financiamento da greve dos enfermeiros: Marcelo prosseguiu no seu papel de animador de programas de televisão e Paulo Macedo declarou que falar do que aconteceu na CGD é uma perda de tempo. Em resumo, Portugal é uma rábula.
O direito à greve é sagrado mas uns grevistas são mais sagrados que outros.
De um momento para o outro a greve dos enfermeiros tornou-se o inimigo público nº 1 e o seu financiamento é objecto de teorias várias, algumas delas mais de conspiração que de reflexão: para o primeiro-ministro os enfermeiros querem destruir o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na mesma linha o Grupo Parlamentar do PS alega que “nada impede que interesses contrários ao SNS, sejam eles privados ou de qualquer outra índole, possam utilizar este mecanismo para fragilizar o sistema público.”
Oh inclemência! Oh martírio! Após anos e anos a termos de achar normal ligar a televisão e vermos Mário Nogueira de olhos faiscantes a garantir-nos que a escola dos nossos filhos não vai funcionar e Arménio Carlos anunciando-nos com aquele sorrisinho boçal que “vamos ter um ano quentinho” ou seja com greves nos transportes dia sim dia sim, a esquerda vem informar-nos que o direito à greve é sagrado desde que se escolha o credo certo. Apetece perguntar: se os enfermeiros chamassem Socorro Vermelho ou Peditório Solidário ao crowdfundig já não havia suspeitas sobre a origem do financiamento? E se trabalhassem no sector privado a sua greve já era aceitável?
O que está a acontecer com a greve dos enfermeiros faz parte da cartilha dos governos populistas, sobretudo quando apoiados por radicais. Num primeiro momento, o discurso é dominado pela promessa. Os governantes não só prometem tudo como acusam os seus antecessores de terem sido incapazes de dialogar e descrispar (era esse o doce tempo em que, por exemplo, o primeiro-ministro se declarava “surpreendido pela polémica” em torno da aplicação das 35 horas de trabalho na função pública).
Num segundo momento passam a fazer um discurso mais cauteloso: é a fase em que, invocando o realismo, os ilusionistas da véspera começam a aludir a cálculos que ficam sempre para amanhã. (Desta passagem do ilusionismo para o realismo procrastinado é particularmente representativa a atitude Marcelo Rebelo de Sousa ao promulgar o diploma das 35 horas na função pública: “Presidente da República promulga 35 horas deixando em aberto recurso ao Tribunal Constitucional em caso de aumento real de despesa”. )
Num terceiro momento, os mesmo que gritaram e juraram pela descrispação recorrem a tudo aquilo que condenavam quando eram oposição para reprimir os que não se submetem ao seu discurso e que automaticamente caem no campo do anti-patriotismo e ligação a interesses obscuros, regra geral do sector privado, imperialismo, fascismo… ou o que estiver a dar como facto gerador de indignações fáceis. É nesse momento em que estamos relativamente à greve dos enfermeiros. Para os devidos efeitos já foi convocada essa polícia para todo o serviço dos senhores primeiros-ministros que é a ASAE. Mais se verá nos próximos dias, tudo evidentemente com a conivência e aplauso dos mesmos que andam há anos a jurar pelo sagrado direito à greve.
Foi assim logo no PREC quando as greves passaram a ser reaccionárias e Carlos Carvalhas, que então ainda não era secretário-geral do PCP mas sim secretário de Estado do Trabalho, pretendia que a RTP não viesse perturbar a aprovação da unicidade sindical com debates inúteis e evidentemente fascistas. E não fosse a esquerda dona e senhora da narrativa oficial sobre o presente e o passado – essa narrativa em que que a direita surge invariavelmente como inimiga dos trabalhadores – e não estariam reduzidas à condição de notas de rodapé os episódios mais severos de repressão dos trabalhadores em Portugal. Afinal casos como o do vagão-fantasma de 1919, em que um governo português obrigou os ferroviários grevistas a viajarem num vagão aberto à frente das locomotivas para evitar actos de sabotagem, aconteceram quando o governo em questão era chefiado pelo muito jacobino, maçónico e querido no Largo do Rato, Afonso Costa. Logo, mesmo atropelando um pouco as datas, é difícil incluir casos como o vagão-fantasma (1919) ou os “fuzilamentos de Setúbal” levados a cabo pela GNR (1911) na presente musealização das lutas operárias como sinónimo de anti-salazarismo. Consequentemente dessas lutas e desses protagonistas pouco ou nada reza a História.
Ao contrário do que diz o PS e seus apoiantes (quando estão na oposição) não acho que o direito à greve possa ser absoluto e há serviços – como o das forças policiais – em que nem sequer considero que seja aceitável o direito à greve. E entre as razões porque não aceito que o SNS seja sinónimo quase exclusivo de hospitais públicos (ou privados) conta-se precisamente a convicção de que só a existência de prestadores de serviços públicos e privados na área da saúde (como na do ensino) e a possibilidade de os utentes poderem livremente escolher a que mais de se lhes adequa, permite aos cidadãos-contribuintes-utentes não ficarem reféns dos muitos grupos e interesses que se cruzam no mundo dos cuidados de saúde: sindicatos, ordens, grupos económicos, partidos. administrações, partidos políticos, seguradoras, empresas farmacêuticas, igrejas, maçonarias…
Nos próximos dias veremos a quantas mãos se escreve o capítulo do “direito à greve é sagrado mas uns grevistas são mais sagrados que outros”. Mãos úteis para tal redacção não vão faltar.
Não é minimamente do seu interesse mas é maioritariamente do nosso.
“A minha perda de tempo com o passado será apenas a necessária. Primeiro porque é uma perda de tempo e, depois, porque isso é um desfocar do presente, da missão e das 7.000 pessoas que trabalham na Caixa. O meu interesse é que estas não estejam totalmente desfocadas. Perder tempo com o passado? Não é esse, minimamente, o meu interesse.” – Portanto vários milhares de milhões de euros perdidos em operações que só o compadrio explica não só são assunto que interesse a Paulo Macedo discutir como este até considera que essa discussão “causará danos”. Acontece que Paulo Macedo aceitou ser gestor da CGD. Não foi forçado. Não foi enganado. Sabia ao que ia e sabia muito bem que esse passado existia. Se não quer falar dele ou se não consegue lidar com essa desfocalização o melhor será mudar de emprego.
Como qualquer pessoa que tem de gerir instituições, empresas, associações… que estão a ser investigadas por factos do seu passado recente, Paulo Macedo detesta que lhe falem de decisões por que não foi responsável. Não costumam é essas outras pessoas responder com a sobranceria manhosa usada por Paulo Macedo na sua recente ida ao parlamento. Quem se comporta como Paulo Macedo se comportou na comissão parlamentar sabe que tem poder e Paulo Macedo tem-no. (Tem tanto poder que nem sequer saíu beliscado pelo aparente mistério da CGD ter entregue um relatório em que se podia ler o que oficialmente fora rasurado).
Por enquanto, a esquerda está disposta a tolerar Paulo Macedo, a pagar-lhe bem (os 432 mil euros pagos a Paulo Macedo não escandalizam a esquerda que anda entretida a querer acabar com as assimetrias no sector privado. Para quê falar da CGD quando temos o Pingo Doce à mão?) Até se faz de conta que Paulo Macedo não foi ministro de Passos Coelho enquanto os seus créditos como gestor forem úteis para que não se questione a CGD enquanto banco público. Se de caminho Paulo Macedo fizer o prestimoso serviço ao PS de contribuir para que não se fale do que aconteceu na CGD muito particularmente entre 2006 e 2008, quando Armando Vara era administrador, então melhor.
Todo este maravilhoso cenário só tem um problema: os portugueses enquanto accionistas forçados de um banco têm o direito de saber como foi possível os pareceres da direção de risco da CGD serem ignorados na hora de conceder créditos a determinadas pessoas e a determinadas empresas. Mais, e por muito que isso penalize o ego de Paulo Macedo – cada vez mais um nome a ter em conta na composição de uma geringonça à direita – temos o direito e o dever de perceber não só como aconteceram tais descalabros mas também que garantias temos de que factos semelhantes não voltarão a acontecer.
Foi também por gente com responsabilidades ter optado pelo silêncio e ter preferido focar-se no que não penalizava as instituições que Portugal se tornou num país em que um homem é mais importunado pelo Estado porque construiu uma casa-de-banho num terraço do que pelos milhões que pediu a um banco. Milhões esse que não pagou. Ao pé do que somos em 2019 o telefonema de Raúl Solnado para o inimigo é um assunto sério.