Não obstante o Código dos Contratos Públicos (CCP) já incentivar, no seu artigo 62º, sempre que possível, a adoção de práticas digitais na formação dos contratos de empreitada de obras públicas, nomeadamente através da chamada “modelização eletrónica de dados de construção” ou “Building Information Modelling (BIM)”, a nova legislação veio reforçar esta possibilidade para a elaboração dos projetos de obra pública, através da Portaria nº 255/2023, e criar a oportunidade de, no futuro, tornar este tipo de práticas obrigatórias para o licenciamento de projetos (arquitetura e especialidades) nos municípios, por via da Lei nº 50/2023.

No contexto global, contudo, este tipo de iniciativas pecam por incipientes e tardias. Ao nível legislativo, países como Alemanha, Espanha e França, já desde há vários anos, têm vindo a tomar diversas medidas de incentivo à inovação, financeiras e não-financeiras, em particular sobre a implementação BIM, havendo casos como o Reino Unido, Noruega e Finlândia que foram ainda mais longe, ao tornar esta metodologia obrigatória, com determinados requisitos, para certos projetos públicos. A iniciativa governamental, por sua vez, por efeito top-down, tem estimulado o setor privado.

Posto isto, apesar de a digitalização ter vindo a ser reconhecida como um eixo estratégico para o progresso da construção, as questões que surgem são: porquê, para quê, e o que isso implica?

A produtividade (valor do trabalho gerado por recursos consumidos) na construção não só é relativamente reduzida, como, nos últimos 20 anos, tem crescido, à média anual, três vezes abaixo do da economia global, sendo inclusive uma das indústrias menos digitalizadas no mundo, somente à frente de setores como a agricultura e a mineração. Basicamente, de forma preocupante, não se tem conseguido construir mais e melhor com os mesmos recursos, ou o mesmo com menos recursos, aproveitando a evolução tecnológica.

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Esta situação ganha relevância acrescida perante a crescente necessidade de edifícios e infraestruturas e a anunciada escassez de recursos (mão-de-obra, matérias-primas e energia), que tendem a impactar negativamente nos custos de construção e, consequentemente, na rentabilidade do setor.

Urge assim agir para aumentar a produtividade, adotando medidas de caráter multifatorial relacionadas com processos de contratação, gestão, execução e supervisão de projetos e obras, que considerariam, recomendavelmente, a digitalização da construção. Fundamentalmente, este conceito abrange tendências tecnológicas para ligar a conceção à produção (e.g. construção offsite; robótica e automação) e à exploração (e.g. big data, inteligência artificial e machine learning; internet of things), para melhor gerir a informação da construção. Enquadra-se assim no âmbito da chamada quarta revolução industrial (ou construção 4.0, no caso presente), que tem o objetivo geral de aumentar a eficiência dos setores produtivos e gerar mais riqueza, contribuindo desta forma para o progresso da economia e da sociedade.

Sobretudo, as novas tecnologias permitem maior transparência e melhor gestão do risco, ao facilitar, para todas as partes interessadas, o acesso à informação correta, da entidade correta, na forma correta e no tempo correto. Mitiga-se assim ineficiências, que se podem repercutir em custos e prazos acrescidos, causadas por erros, omissões e incompatibilidades, e por desafios na leitura, extração e comunicação de dados sobre a obra.

Neste sentido, destaca-se a metodologia denominada de Building Information Modelling (BIM) enquanto eixo central da construção 4.0, ao mais facilmente permitir gerar, ler e extrair toda a informação necessária ao longo do ciclo de vida do ativo construído, por meio de modelos digitais 3D únicos, normalizados e acessíveis de forma centralizada a todos as partes interessadas. O BIM permite assim alimentar tecnologias 4.0 no âmbito da construção (e.g. robótica e automação, abrangendo tecnologias como impressão 3D, laser scanner e drones, para o levantamento de informação ou implementação no local) através de dados estruturados.

Todavia, os desafios para a implementação da digitalização são vários. Desde a propensão para a utilização de ferramentas tradicionais, em paralelo com as tecnologias digitais, até às sucessivas alterações de projeto e à falta de competências e capacidades, gerando assim várias ineficiências, e à maior transparência proporcionada pelas ferramentas digitais, que, incitando a uma maior coordenação intra- e inter-disciplinar, implica a mobilização de um maior esforço, particularmente na fase de conceção, face aos processos tradicionais.

A resistência à mudança justifica-se não só pela construção enquanto indústria tradicionalista, mas também pelo desconhecimento geral das potenciais vantagens da digitalização e da sua integração ao longo do ciclo de vida dos projetos, assim como pela elevada dispersão ao nível da formação e qualificação, verificando-se uma elevada escassez de recursos com conhecimento e experiência combinada em processos e tecnologias digitais e em projeto e obra. A falta de normalização e legislação, de forma completa e acessível, também constitui um desafio à transformação digital, sabendo-se, contudo, que, mundialmente, nos últimos anos, tem havido uma grande evolução a este nível, destacando-se o exemplo da norma ISO19650 enquanto referência global para gerir a informação ao longo do ciclo de vida de um ativo construído utilizando BIM.

O investimento em digitalização na construção é muitas vezes condicionado por retornos difíceis de calcular e dilatados no tempo. Na realidade, tendencialmente, o retorno é de médio-longo prazo e o seu cálculo baseia-se no conceito de custo de oportunidade, ou seja, na valorização dos ganhos de produtividade e dos potenciais erros que não seriam detetados a tempo caso fosse utilizado o processo tradicional. Assim, podem ser quantificados os valores que o cliente (e os prestadores de serviços) pode não gastar, não é ganhar, ao mitigar possíveis ineficiências.

A digitalização tem assim sido mais aplicável (e justificável) em projetos de maior dimensão e complexidade e onde a operação e manutenção é mais relevante (e.g. hóteis, escritórios, hospitais), embora possam também ser conseguidos benefícios significativos em projetos de menor escala e com uma visão mais imediata (e.g. menor time-to-market, menores custos de construçao e maior maketability). Neste contexto, o setor privado tem prevalecido face ao público, devido a motivos como falta de competências e de capacidade administrativa.

A gestão da mudança requerida para o sucesso da digitalização na construção deve basear-se numa estratégia em torno de 3 níveis chave, segundo uma abordagem top-down: governo, organização e projeto.

O governo deverá criar sistemas de incentivo, estabelecer normas e regulação, e desenvolver ambientes colaborativos. Isto pode incluir, por exemplo, financiar empresas e centros de investigação; definir requisitos específicos para a transformação digital ao nível das organizações e dos empreendimentos; fazer alterações legislativas no âmbito da consulta e contratação de projetos e obras; e, muito importante, promover a colaboração entre universidades e empresas, no sentido de adaptar os modelos de ensino e de negócio à evolução do ambiente construído, que, crescentemente, precisa de novas competências, para funções novas e existentes, de caráter mais tecnológico.

Ao nível organizacional é importante o apoio da gestão de topo, passando por iniciativas intra- e inter-organizacionais, até atingir um estágio de melhoria contínua. Isto requer pessoas, tecnologia, formação e qualificação, de modo adequado às necessidades e aos níveis de maturidade do negócio e do mercado. As empresas do setor deverão ainda cooperar entre si a fim de partilhar conhecimento, experiência e recursos para adaptar a sua operação ao progresso tecnológico, ganhando assim mais escala para competir no mercado global.

Ao nível do projeto é crucial definir e controlar os modelos e requisitos contratuais, incluindo incentivos financeiros (e.g. “perfomance-based contracts”), apropriados para promover a integração de todas as fases e de todos os participantes no ciclo de vida da construção, mitigando assim riscos como os que resultam de práticas unilaterais e da heterogeneidade de competências e capacidades, que tendencialmente incrementam a resistência à mudança. Em particular, deverá ser assegurada uma linha condutora do lado do dono da obra que defina, especificamente, quem vai fazer o quê, quando e como, sendo isto fundamental para evitar aplicações tecnológicas fragmentadas, sem quaisquer protocolos de normalização e colaboração. Neste sentido, a avaliação e contratação das competências e capacidades necessárias e suficientes para assegurar a adequada execução das metodologias e tecnologias requeridas é um fator chave, sabendo que algum défice a este nível pode comprometer o sucesso do projeto.

Posto isto, existe uma oportunidade emergente para a transição digital no setor da construção, desde que baseada numa estratégia sustentável e integradora, sabendo que, caso contrário, os resultados podem ser desfavoráveis e até piores do que os obtidos num processo tradicional.