No passado dia 1 de Abril, o Conselho de Ministros anunciou um diploma que previa a possibilidade de realização de “eventos teste-piloto”, isto é, eventos culturais com testagens pré-evento e monitorização pós-evento, de modo a avaliar se os espectáculos culturais, mesmo cumprindo as regras sanitárias, representariam (ou não) risco de acelerar contágios da Covid-19. O diploma saiu publicado uns dias depois e especificou o alcance da medida: os resultados desses eventos teste-piloto permitiriam “a definição das orientações técnicas relativas à ocupação de lugares, à lotação e ao distanciamento físico” em espectáculos e festivais nos próximos meses. Ou seja, se as experiências corressem bem, as lotações poderiam eventualmente tornar-se maiores e até a realização de festivais de maior dimensão poderia ser viabilizada, desde que com as regras adequadas.

A medida foi bem-recebida e a sua pertinência reconhecida. Orientar as políticas públicas através de experiências e evidências é uma inequívoca boa prática. Aliás, em vários países, experiências análogas têm sido efectuadas, precisamente para avaliar os riscos de retomar as actividades culturais e compreender que restrições são as mais adequadas para manter o sector cultural a funcionar e, ao mesmo tempo, as pessoas seguras. Os resultados conhecidos a nível internacional apontam para que a realização de espectáculos seja viável e segura. Contudo, em Portugal, justificava-se realizar o mesmo tipo de experiência e olhar para os resultados, para então ajustar as medidas (lotação, distanciamento, lugares, tipo de eventos).

Assim, em Portugal, organizaram-se quatro eventos teste-piloto, sempre aplicando as regras sanitárias básicas. Os dois primeiros tiveram lugar em Braga, nos dias 29 e 30 de Abril, ambos com lotações de 400 pessoas, ao ar livre, embora o primeiro (espectáculo humorístico de Fernando Rocha) tivesse lugares sentados e o segundo (concerto de Pedro Abrunhosa) tivesse lugares em pé. O terceiro evento-piloto ocorreu em Coimbra, a 8 de Maio, também ao ar livre, com várias bandas locais, com lotação prevista de 1000 pessoas em pé, divididas em grupos de 250. O quarto evento-piloto realizou-se em Lisboa, dia 9 de Maio, na sala do Campo Pequeno, com lotação de 1000 lugares sentados, para assistir a um espectáculo de comédia com vários humoristas no alinhamento.

No dia 5 de Maio, após o anúncio dos eventos-piloto em Coimbra e Lisboa, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, explicava que, muito em breve, os resultados seriam analisados pela DGS e divulgados — entre uma e duas semanas. E que isso era importante para o sector, visto que muitos agendamentos para o Verão, em particular concertos e festivais, estariam na expectativa destes resultados — para decidir sobre a viabilidade de manter os eventos em 2021 ou adiá-los para 2022.

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5 Entre Maio e Junho, o prazo da ministra da Cultura esgotou-se e nada. Os dias continuaram a passar e nada. Entretanto, com todo um sector cultural refém dessa indefinição e com o calendário a apertar as margens de manobra para a organização dos eventos, os adiamentos e cancelamentos sucederam-se. O objectivo político imediato, que era garantir a realização de vários eventos ainda em 2021 em condições de segurança, fracassou logo pelos atrasos das autoridades públicas. Dúvida: o que teria acontecido?

6 Esta semana, a 14 de Junho, veio uma resposta, por parte das associações representativas do sector cultural: um “problema informático” teria inviabilizado a análise dos dados dos espectadores e, portanto, não se sabia ainda se os eventos teriam contribuído para gerar contágios de Covid-19. Aparentemente, estaria em causa uma incompatibilidade entre os dados recolhidos pela Cruz Vermelha (parceira nestes eventos-piloto para a testagem) e as bases de dados da DGS, que não teria conseguido processar a informação adequadamente. Será o problema de incompatibilidade corrigível? Talvez não, talvez sim — mas demorará mais tempo. E, já com quase 50 dias após a realização dos eventos, é possível afirmar que estas falhas comprometem, em grande medida, a utilidade das experiências dos eventos-piloto.

7 No dia seguinte, 15 de Junho, a DGS rejeitou dificuldades técnicas ou problemas informáticos. A explicação, afinal, seria esta: para concluir a monitorização, “é necessário fazer corresponder a informação de identificação que foi utilizada para aceder aos eventos com o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, o que torna o processo mais demorado”. É por isso que os trabalhos de monitorização “estão ainda em conclusão”. Tradução: mais de um mês após os eventos, a DGS não conseguiu fazer o básico — associar a identidade dos espectadores às testagens. Se isto não é uma confissão de incompetência, não sei o que poderá ser.

Há dois dias, nesse mesmo dia 15 de Junho, a DGS emitiu uma norma referente a eventos familiares (baptizados ou casamentos) e culturais. Essa norma obriga a realização prévia de um teste à Covid-19 para todos aqueles que queiram ir a um espectáculo ao ar livre com mais de 1000 pessoas ou em sala fechada com mais de 500 pessoas. Ou seja, quem desejar ir a um concerto que exceda essas lotações terá o custo suplementar (financeiro e logístico) de fazer um teste que cumpra os requisitos de acesso. Na prática, a norma da DGS inviabilizou esses eventos culturais, que em alguns casos terão bilhetes mais baratos do que os próprios testes à Covid-19.

Agora, atente-se ao insólito desta cronologia: organizaram-se eventos-piloto para avaliar riscos e ajustar regras para as actividades culturais, a ministra sublinhou a importância desses eventos-piloto para guiar as decisões, os resultados dos eventos-piloto nunca apareceram devido ao mau planeamento e incompetência dos serviços, o sector cultural foi cancelando eventos face à indefinição com o avançar do calendário, e, por fim, a DGS emite normas actualizadas sobre lotações e regras de acesso a eventos culturais sem esperar pelos resultados dos eventos-piloto. Ou seja, sem ter qualquer suporte de evidências que justifique as medidas impostas sobre o sector cultural, a DGS impôs restrições até mais severas do que aquelas que vigoravam, embora hoje uma parte substantiva da população que já esteja vacinada. Para além de incompetência, a incoerência fere os olhos.

10 É desolador constatar que em Portugal falhamos assim que se exige método, transparência e resultados. Esta era uma experiência simples — testar espectadores e fazer monitorização durante 15 dias após evento cultural — e que foi realizada com sucesso em vários países (e em escalas muito maiores), precisamente para orientar políticas públicas. Mas Portugal será sempre Portugal: ingenuidade a nossa, esta de acreditar que as orientações poderiam ser mais do que mera desorientação. Agora digam-me: será razoável confiar nas autoridades públicas de saúde e atribuir algum tipo de seriedade às medidas políticas de quem, na hora da decisão, exibe tamanha incompetência, incapacidade e irrazoabilidade? Eu, sinceramente, não acho que seja.