Olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço
Provérbio tradicional português

O bom funcionamento de um Estado de Direito depende, em boa medida, da solidez dos seus pilares fundamentais, desde logo, dos princípios da separação de poderes e da legalidade da atuação da Administração Pública.

A separação de poderes visa evitar que todo o poder esteja concentrado numa única instituição ou grupo de pessoas. A separação de poderes materializa-se num sistema de freios e contrapesos, onde cada ramo – legislativo, executivo e judicial – tem funções específicas e controla ou limita o poder dos outros ramos, e do próprio ramo. No contexto dos Estados de Direito, esse princípio é fundamental para garantir a democracia, a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e o respeito pelas leis e pela Constituição.

Num segundo nível, o princípio da legalidade da administração estabelece que a atuação da Administração Pública deve basear-se na lei. Isso significa que todos os atos e decisões dos órgãos e agentes públicos devem estar de acordo com as normas legais estabelecidas, e não baseados em impulsos, caprichos ou interesses pessoais.

No passado dia 25 de Abril, o Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, depois de uma intervenção acalorada em plenário, onde apelou aos senhores deputados a que tivessem um comportamento urbano, cortês e educado, que não envergonhasse o nome de Portugal, viu declarações suas a um grupo amplo (o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, entre outros), difundidas pela ARTV (canal televisivo do Parlamento), causarem polémica, em especial, as que se refeririam a uma eventual falta de “integridade política”, ou, como mais adiante esclareceu, de “maturidade política” do partido Iniciativa Liberal (“IL”). Em nota publicada divulgada na madrugada de quinta-feira, o Presidente da Assembleia da República argumentou que a dita conversa seria “informal e privada” e, que a gravação sonora não teria sido autorizada. Antes, porém, da dita nota ser emitida, a AR TV apagou o vídeo apesar de, como noticiou o Observador, o mesmo estar autorizado e resultar de uma prática reiterada e que acontece todos os anos.

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Ao contrário do que é a convicção do Presidente da Assembleia da República, as conversas que mantém em público com outros governantes não precisam, para serem gravadas, nem do seu conhecimento, nem da sua autorização. Mais, as conversas que mantém com pessoas como o Presidente da República ou o Primeiro-Ministro, sobre assuntos relacionados com a política portuguesa, poderão ser confidenciais, mas nunca privadas, não beneficiando, por essa via, da proteção legal que existe nesta matéria. Ocorre que não só o teor da conversa não foi privado, como nela foi possível perceber que existe uma convicção, da sua parte, de que o acesso às vice-presidências não depende da votação popular, mas da criação de “méritos” por parte dos partidos, e da exigência de um certo tipo de “comportamento” ordeiro que agrade ao grupo de pessoas que exercem os cargos maiores dos nossos órgãos de soberania – algo que merece ser amplamente discutido, no plano político. Havendo leis que protegem a liberdade da imprensa, um código civil que define, com clareza, as circunstâncias em que podem ou não ser recolhidas imagens sem consentimento dos visados, um diploma que estabelece a forma como devem ser tratados dados pessoais, e um regime específico que regula o funcionamento do Canal Parlamento, do portal da Assembleia da República e da presença institucional nas redes sociais, importa perceber se, não obstante toda o empenho manifestado pelo Presidente da Assembleia da República, nas suas intervenções comemorativas do Dia da Liberdade, na promoção da defesa das instituições e do bom nome de Portugal, na sua ação posterior, não estamos perante um ato de abuso de poder, em claro conflito de interesses, e contrário a tudo aquilo que se espera num Estado de Direito democrático. É fundamental que nos próximos dias a Assembleia da República esclareça qual a razão pela qual as imagens foram apagadas e removidas, e de quem partiu a iniciativa e decisão – se foi exclusiva do próprio Presidente da Assembleia da República, ou se a mesma foi fundamentada e partilhada pelos órgãos próprios do Parlamento. Importa, finalmente, perceber, que circunstâncias – até no plano processual –, suportam um suposto processo de averiguações a imagens captadas na AR durante uma conversa “particular”, que terá sido instaurado na sequência da divulgação das imagens.

Não está em causa, apenas, saber se uma conversa entre os Altos Dignatários da Nação, numa sala nobre da AR, poderia ou não ter sido gravada ou difundida, ou se a mesma tinha ou não carácter “privado” – algo que, diga-se, não tem qualquer fundamentação jurídica. Importa também perceber se o Presidente da Assembleia da República decidiu liminarmente e em causa própria, de cabeça quente e na tentativa de minimizar danos políticos, ultrapassando os mecanismos que, nestas situações, estão previstos na lei e, até, se aconselhariam reforçados, por ser o mesmo beneficiário. Diariamente, há milhares de portugueses vilipendiados, que para tutelar os seus direitos precisam recorrer a uma justiça morosa e lenta, a quem lhes é negado este tipo de ação “expedita” e “direta” que, tudo aponta, terá sido levada a cabo por quem tem como principal responsabilidade, dar o exemplo e honrar uma instituição que é – recorde-se – a casa onde são feitas e aprovadas as Leis.

Espera-se que este tema não seja ignorado pela atenção política e mediática que, necessariamente, teremos de dar ao caso “Galamba”. Por vezes, nas relações pessoais e profissionais, existem discórdias e divergências, que podem conduzir a conflitos insanáveis e ruturas. O Estado português e o Governo, seguramente, não estão imunes à degradação das relações de confiança entre os membros que o integram. Por isso é que a devolução de um ou dois computadores não deveria ser um problema político ou de relevância nacional, por mais informação classificada que os mesmos pudessem incluir. No plano legal e técnico, não falta legislação e boas práticas a que Portugal está vinculado, que servem para garantir que a proteção da informação sensível do Estado português não está à mercê do arbítrio e das desinteligências entre governantes e os seus gabinetes ou, até, da captura da mesma para fins pessoais. Das duas, uma: ou um ministro e o seu staff direto com a responsabilidade da pasta das infraestruturas, ignoram por completo as regras de manuseamento de informação classificada em vigor no seu Ministério (e a que o Estado e o Governo português estão vinculados); ou o grau de desorganização é de tal forma que informação classificada fica em risco à mais pequena tensão entre duas pessoas com responsabilidades políticas, estando a soberania nacional dependente dos seus humores e da sua boa ou má vontade. A terceira hipótese, impronunciável pela sua gravidade, é que se esteja a utilizar uma suposta existência de informação classificada na posse de um adjunto para suportar uma intervenção do SIS com o único objetivo de garantir que comunicações pessoais e documentação que suporta processos de inquérito em curso não ficam “nas mãos do inimigo” político. Certo é que, em 2023, a recusa da devolução de um computador por parte de um adjunto deveria resolver-se, não chamando Serviços de Informações do Estado, próprio de Estados totalitários ou democracias musculadas, mas simplesmente cancelando a VPN de acesso ao sistema de gestão documental e/ou, nos casos em que houvesse documentos guardados na memória do computador portátil, da password de acesso aos mesmos, documentos esses que nunca deveriam poder ser abertos, offline, sem password, sem registo de consulta, e em geolocalizações não autorizadas.

Há que averiguar, até às últimas consequências, se estamos perante abusos de poder, ausência de cumprimento de regras e procedimentos legais em vigor, ou se temos um problema grave de guarda de informação classificada no Governo. O Ministério das Infraestruturas tem, hoje, sob sua responsabilidade, dossiers de enorme importância, económica, soberana, e militar, como a estruturação do Porto de Sines como plataforma de entrada na Europa de gás, a privatização da TAP ou a localização do novo aeroporto. Se João Galamba entrou em pânico por sentir que informação classificada estaria em risco, ao ponto de alguém – importa saber quem – ter aparentemente acionado o SIS, em violação clara da separação dos poderes e da legalidade, então o que temos em mãos é muito mais grave do que um arrufo entre um PS em desagregação.

Espera-se que, por esta vez, o Presidente da República compreenda que, em ambos os casos, ele é o último garante da dignidade das instituições e da salvaguarda da lei. Da sua atuação, nesta fase, depende que, não obstante as fragilidades exibidas pelas instituições, possamos dizer que ainda vivemos num Estado de Direito democrático.