1 – A partir de um trabalho efectuado por cinco académicos (Gonçalo Coelho, Guilherme Vasconcelos Vilaça, Jorge Fernandes, Pedro Caro de Sousa e Tiago Fidalgo de Freitas), o Observador decidiu promover um debate aberto sobre a Constituição da República Portuguesa (CRP).

Esse debate, efectuado sob a coordenação científica de Gonçalo Almeida Ribeiro e de dois dos autores daquele trabalho, é uma iniciativa que bem justifica a participação de todos os que estudam e ensinam Direito Constitucional e que ao longo dos anos, na universidade e fora dela, têm lidado de perto com a nossa Lei Fundamental, quer de um ponto de vista teórico, quer sobretudo numa perspectiva prática. Como acertadamente assinalam os autores desta proposta, «é aí – na vida real do dia-a-dia, mais do que no texto – que a Constituição importa».

2 – Na apresentação da sua proposta, os autores afirmam, logo nas primeiras linhas, que «a Constituição não precisa de ser revista» e que se trata de «uma Constituição que na prática provou». Referem, por outro lado, que «um dos problemas da Constituição portuguesa é, aliás, o excesso de revisões constitucionais que sofreu».  

3 – Em face disto, estranha-se, desde logo, o motivo pelo qual decidiram então elaborar e trazer a público uma proposta de novo texto constitucional. Esse facto, aliás, é tanto mais singular quanto os subscritores daquela proposta ora dizem que Portugal tem «vivido em permanente estado de revisão constitucional» como, logo a seguir, criticam a «hiper-rigidez» da nossa Constituição. Pelos vistos, esta «hiper-rigidez» da Constituição de 1976 não impediu que tenhamos vivido em «permanente estado de revisão constitucional», um paradoxo que mereceria ser explicado por este grupo de académicos que se definem como «cinco estrangeirados nascidos e criados depois de a Constituição ter sido aprovada».

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4 – É certo que, em bom rigor, os autores não apresentam verdadeiramente um novo texto constitucional, pensado e amadurecido, elaborado de raiz, com uma sistematização e uma redacção originais. Limitam-se, isso sim, a suprimir dezenas de normas da Constituição, procedendo, do mesmo passo, a alterações em certas disposições da Lei Fundamental, algumas de grande fôlego, como adiante se verá.

5 – Ante tudo o que acaba de se expor, é legítima a interrogação sobre se estes autores não foram, eles próprios, afectados pelo vício que pretendem corrigir: o de julgar que os problemas do país decorrem primacialmente da Constituição e se resolvem através dela – ou da sua revisão.

Foi desta convicção que, há quarenta anos, nasceu um dos textos constitucionais mais extensos e prolixos do mundo. Todavia, está por provar – e essa seria questão primordial que, antes do mais, caberia aos autores esclarecer – que de tal extensão resultou efectivamente um «problema» que mereça e justifique uma redução tão drástica do articulado da Constituição como aquela que agora é apresentada.

Mais ainda: seria importante especificar com clareza e identificar com rigor que «bloqueios» derivaram, por si só, da dimensão do nosso texto constitucional. Porventura ela será excessiva, até em comparação com outras constituições, mas, verdadeiramente e em concreto, que problemas nacionais – políticos ou jurídicos, económicos ou sociais – se devem à desmesura do articulado da nossa Constituição?  

6 – O labor destes académicos, como se disse, concentra-se principalmente em reduzir o articulado da Constituição. Simplesmente, e a menos que fossem capazes de demonstrar, o que não fizeram, que da extensão desse articulado resultou inequivocamente o problema x ou a questão y, o seu trabalho reveste-se sobretudo de um alcance estético ou literário, mais do que técnico-jurídico ou político.

Por outras palavras: num sentido inverso ao dos deputados constituintes, que julgaram tudo resolver através de uma Constituição muito extensa, os autores desta proposta supõem que uma melhoria da Lei Fundamental se faz através da eliminação em massa de normas constitucionais. O produto final deste esforço será, sem dúvida, um texto constitucional mais esbelto e adelgaçado, talvez até mais elegante. Fica por demonstrar, no entanto, que isso representa, em si mesmo, uma benfeitoria – quer para o país, quer para a própria Constituição.

7 – Redigir um novo texto constitucional representa sempre um exercício intelectual estimulante, por certo mais sedutor e apelativo do que percorrer detidamente códigos e legislação avulsa, ouvir os ensinamentos da doutrina, conhecer a prática política de décadas de democracia ou analisar a fundo os milhares de acórdãos que o Tribunal Constitucional tem proferido ao longo da sua existência. Mas, para que esse exercício não se converta num divertissement inconsequente, interessa identificar de forma precisa os problemas e os bloqueios que devem ser ultrapassados. Assim, antes de avançar uma proposta de nova Constituição, os seus autores deveriam ter enunciado, de forma mais clara, que objectivos se propõem alcançar e, sobretudo, que defeitos existem na Lei Fundamental da República. Indo até mais longe, deveriam apontar que reformas políticas, económicas ou sociais foram até hoje adiadas ou inviabilizadas por causa da Constituição.    

8 – Interessava, por outro lado, aferir da viabilidade das propostas feitas – e ponderar os resultados a que podem conduzir no contexto específico do país a que se destinam.

A apresentação, nos moldes em que é feita, de uma «nova Constituição» pode, sem dúvida, beneficiar do facto de este exercício abstrair das coordenadas da realidade política e dos dados da experiência prática, sendo feito em estado de total pureza. No fundo, partindo do grau zero; ou, se quisermos, pensando sob o resguardo de um saudável «véu de ignorância».

Assim, os autores desta proposta não se mostram condicionados, no exercício da sua liberdade criativa, por considerações de ordem política ou pragmática. Todavia, mesmo nesse domínio optaram por prescindir de uma parte substancial dessa liberdade, já que, ao invés de redigirem um texto de raiz, seguiram pari passu a Constituição em vigor.  

Não é difícil escrever normas constitucionais. Difícil é indagar se essas normas têm possibilidade de ser aprovadas e, caso o sejam, que resultados daí decorrem para um adequado equilíbrio dos poderes do Estado ou para a devida salvaguarda dos direitos dos cidadãos.    

Porém, com o modo de proceder que estes autores adoptaram, acaba por se cair no pior de dois mundos: por um lado, não se leva a imaginação criadora a ponto de abandonar o texto preexistente; por outro, prescinde-se de uma avaliação realista sobre a exequibilidade prática – sobretudo, política – das propostas apresentadas. Mais precisamente, não se procura indagar se os partidos políticos – e, já agora, a sociedade civil – estarão dispostos a aceitar aquilo que lhes é proposto, como é o caso, por exemplo, da eliminação da norma que consagra o princípio do Estado de direito democrático, um dos fundamentos estruturantes da República portuguesa.

9 – Na ausência dessa indagação cautelar, os autores, sem se aperceberem disso, acabam por contribuir para aquilo que visam combater, e que designam por «excesso de revisões constitucionais». Afirmam, a dado passo, que «se a constituição não precisa de ser revista, é urgente fazer um debate constitucional sério». Simplesmente, o contributo que dão para esse debate não é uma crítica sustentada e fundamentada ao texto constitucional mas a mera apresentação de… mais um projecto de revisão constitucional. Ou seja, se a Constituição, como dizem, não precisa de ser revista, porque se propõem os autores revê-la?

10 – Este será, porventura, o seu contributo pessoal para um «debate constitucional sério». Aqui entramos num dos primeiros e mais graves problemas do texto apresentado: as propostas feitas, seja no sentido da supressão de normas, seja no da sua alteração, não são justificadas e explicadas aos leitores. De tão lacónica, uma abordagem deste género pouco contribui para um debate constitucional – e, muito menos, para um debate constitucional sério. Os autores advertem: «não se espere uma justificação de todas as opções feitas – o objectivo é, tão-só, proporcionar uma visão panorâmica da proposta». Ora, na ausência de uma justificação das várias opções, tendo nas mãos uma mera «visão panorâmica», como podem os interlocutores intervir no debate e perceber sequer o sentido das mudanças sugeridas?

11 – Entre elas, poder-se-ão destacar, a título meramente exemplificativo, as seguintes:

11.1 – As normas remissivas para a lei

A proposta começa por referir, no texto explicativo, que «foram apagados os artigos com conteúdo meramente remissivo – designadamente, a lei». Entendem os autores que, sempre que a CRP remete para a lei a concretização ou o desenvolvimento de uma dada matéria, essa referência constitucional é inútil e, logo, supérflua. No entanto, e algo paradoxalmente, na proposta que apresentam acabam por manter dezenas de normas remissivas. Assim acontece, por exemplo, na definição de limites à aplicação do princípio da universalidade de direitos entre portugueses e estrangeiros, que continuaria a ser regulada por lei (artigo 5º, nº 2); na concretização do direito à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e ao acompanhamento por advogado, que também continuaria a ser regulada por lei (artigo 10º, nº 2); na definição dos casos excepcionais em que é permitido o acesso de terceiros a dados pessoais, que continuaria igualmente a ser remetida para a lei ordinária (artigo 21º, nº 2); na definição dos quadros de exercício da iniciativa privada, «definidos pela Constituição e pela lei» (artigo 29º); na definição das incapacidades eleitorais, igualmente a definir por lei (artigo 31º, nº 1); na determinação do modo como o tempo de trabalho contará para o cálculo das pensões de velhice e invalidez, também relegado para a lei (artigo 43º, nº 3); no estabelecimento de excepções ao princípio da publicidade das reuniões dos órgãos colegiais, que continuaria a ser feito por lei (artigo 56º, nº 1).

Apresentam-se aqui apenas alguns exemplos, entre dezenas, mas suficientemente ilustrativos das normas que se mantêm na proposta apesar de remeterem para a lei a respectiva concretização. A técnica de remissão para a lei ordinária não só é corrente como é justificável, sob pena de termos uma Constituição ainda mais extensa do que aquela que hoje nos rege. Acontece, porém, que os autores da proposta não explicam que critério ou critérios os levaram a, nuns casos, suprimirem as normas constitucionais remissivas e, noutros casos, a manterem-nas. Na ausência dessa explicação, mesmo os que pretendem ler esta proposta de boa-fé e sem preconceitos são incapazes de compreender o seu alcance e o seu propósito.

11.2 – Os direitos fundamentais

Os autores eliminam da Constituição direitos fundamentais tão importantes como o direito à imagem e ao bom nome, à reserva de intimidade da vida privada ou à segurança no emprego (com a inerente proibição de despedimentos por motivos políticos ou ideológicos). Noutros casos, a protecção ao exercício de direitos é substancialmente reduzida, como sucede com o direito à greve. De resto, assume-se claramente que se reduziu de forma significativa o elenco dos direitos sociais.

Trata-se de uma opção ideológica, perfeitamente legítima desde que se não acuse a Constituição de perfilhar uma «ideologia» − e, justamente por isso, dever ser expurgada de referenciais doutrinários que agora, num sentido inverso, se pretendem consagrar na Lei Fundamental. O problema não reside aí, no entanto. O problema consiste, uma vez mais, em não se conseguir perceber a coerência das soluções propugnadas.

Assim, desde logo, é algo bizarro eliminar dezenas de direitos sociais, com o argumento de que se pretende aligeirar a «carga programática» da Constituição, e, em simultâneo, manter o preâmbulo da Lei Fundamental. Se este é preservado por razões históricas ou simbólicas, porque não salvaguardar também inúmeros direitos sociais, que são expurgados a eito?

Além do mais, a desconstitucionalização de dezenas de direitos fundamentais seria um factor de incerteza e insegurança jurídicas. Relativamente a muitos deles, o Tribunal Constitucional, por força do artigo 17º (ou do nº 2 do artigo 7º, na versão do projecto), continuaria a conferir-lhe a protecção atribuída aos direitos, liberdades e garantias. Quanto a esses direitos, o facto de deixarem de ser consagrados na Constituição só teria um efeito: aumentar, nos cidadãos, a incerteza sobre se teriam, ou não, protecção igual à dos direitos, liberdades e garantias. Em suma, a desconstitucionalização de dezenas de direitos fundamentais não teria, em larga medida, qualquer efeito prático, excepto o de adensar a insegurança jurídica para os aplicadores do Direito e, acima de tudo, para os cidadãos.

Por outro lado, que critério leva os autores a desconstitucionalizarem o financiamento de todos os direitos sociais, excepto o da educação? Qual a razão para que o financiamento da educação tenha dignidade constitucional, mas já não o da saúde? Porque se aboliu a referência a um serviço nacional de saúde «tendencialmente gratuito», se os próprios autores do projecto reconhecem que a jurisprudência constitucional teve flexibilidade suficiente para, no passado, admitir o pagamento de taxas moderadoras? Mais ainda: os autores não ponderaram que efeitos poderá ter na vida dos cidadãos, sobretudo os de menores recursos, a abolição da garantia constitucional da gratuitidade (tendencial) do serviço nacional de saúde? Se o fizeram, se o pensaram, qual o motivo para que o ensino seja gratuito e a saúde não?

Noutro contexto, pode perguntar-se: uma vez consagrada uma norma sobre cidadãos portadores de deficiência, os autores não avaliaram que impacto teria – jurídico, político, e até simbólico – a sua eliminação do texto constitucional, como agora propõem? Ou a supressão, que também sugerem, da norma do artigo 67º, sobre protecção da família? Poderão argumentar que visaram suprimir as normas constitucionais com uma excessiva carga programática. Mas, assim sendo, porque mantiveram outras normas, igualmente com uma forte carga programática, que regulam, por exemplo, o direito à habitação e o direito ao ambiente?  

11.3 – O sistema político

No que se refere ao sistema político, os autores oferecem diversas sugestões de reforma. Mas, curiosamente, num texto que se proclama «simplificador» não alteram uma das normas que mais dúvidas e perplexidades tem suscitado entre juristas e politólogos. Com efeito, o dispositivo que trata da responsabilidade do Governo, essencial para a caracterização do nosso sistema político, não é minimamente beliscado pelo afã revisionista deste projecto.

Propõe-se, por outro lado, que o número máximo de deputados à Assembleia da República seja fixado em 200, quando a história política recente (o famoso «115/115») e, bem assim, experiências estrangeiras (v.g., o caso da Suécia) desaconselham a consagração de um número par de deputados, susceptível de criar situações de «empate» no interior do parlamento. É certo que esse risco já existe com a actual composição da Assembleia, sendo igualmente certo que outras «benfeitorias» ora propostas podem favorecer a governabilidade (ex. a criticável forma de aprovação do programa do Governo, proposta no artigo 95º). Ainda assim, e como se está a elaborar um novo texto constitucional, conviria ter prestado mais atenção a factos singelos mas bem conhecidos da nossa história política recente (as votações do «orçamento do queijo limiano» em 2001 e 2002), procurando evitar que se repitam.

Afirma-se, a par disso, que a redução de 230 para 200 deputados permitiria dotar a Assembleia de um corpo de funcionários mais qualificados e independentes. Mas, sendo esse o objectivo da proposta, não se compreende a eliminação da norma do artigo 181º que consagra precisamente a existência de um corpo permanente de técnicos e de especialistas ao serviço da Assembleia, e, bem assim, a supressão da norma do artigo 180º, nº 2, alínea c), que dispõe que cada grupo parlamentar tem direito a pessoal técnico e administrativo da sua confiança.     

Tudo mostra, em síntese, que os autores do projecto não resistiram a entrar no popular debate sobre o número de deputados à Assembleia da Republica.

Como é sabido, a Constituição fixa esse número entre 180 e 230 deputados, sendo o número de 230 actualmente em vigor fixado na Lei Eleitoral para a Assembleia da República. O projecto, mantendo a formulação da norma em causa, bem como o seu limite mínimo – 180 –, reduz o limite máximo para 200 deputados.

Independentemente das consequências desta alteração no plano da representatividade democrática – que nos escusamos aqui de comentar –, é importante assinalar o reforço da rigidez constitucional que o projecto introduz, ao arrepio do anunciado pelos seus autores e pela comissão científica que coordena esta iniciativa.

Além do mais, trata-se de um esforço inútil.

De facto, se o objectivo é reduzir o número de parlamentares será necessário empreender uma revisão constitucional? Não bastaria alterar a lei eleitoral para a Assembleia da República, reduzindo aquele número para 200 deputados, o que se encontra perfeitamente enquadrado nos limites actualmente previstos pelas Constituição?

11.4 – A designação dos juízes do Tribunal Constitucional

Quanto à composição do Tribunal Constitucional (TC), existem, desde há muito, diversas propostas em debate. A que agora é feita reúne todos os defeitos das anteriores sem trazer qualquer vantagem nova. Na verdade, os autores avançam uma solução que não só não resolve os problemas de uma alegada «partidarização» do TC como potencia seriamente a ocorrência de graves conflitos institucionais. Assim, estes académicos propõem, desde logo, que deixem de existir juízes do TC cooptados pelos seus pares, tal como sucede actualmente e que, aliás, representa uma primeira e assaz relevante manifestação de autonomia e independência deste órgão. Em alternativa, sugerem que seis dos juízes constitucionais sejam designados pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM), desconhecendo, muito provavelmente, os problemas que ocorreram a esse propósito em Espanha, onde a atribuição do poder de designação de juízes constitucionais ao Consejo General del Poder Judicial acabou por conduzir a uma «partidarização» deste último órgão – e, o que é mais grave, sem que daí resultasse uma qualquer «despolitização» do Tribunal Constitucional. O TC espanhol, como é sabido, esteve até há pouco dilacerado por uma profundíssima crise interna.  

A par destes seis juízes designados pelo Conselho Superior da Magistratura, outros sete (ou seja, a maioria) seriam designados pelo Presidente da República, de entre «juristas de excepcional mérito». Depois de designados, seja pelo Conselho Superior da Magistratura, seja pelo Presidente da República, os candidatos a juízes constitucionais só poderiam ser nomeados após audição e confirmação da Assembleia da República, por maioria de 2/3 dos deputados (artigo 83º da proposta). Na prática, isto significa que os juízes constitucionais seriam todos eles escolhidos, em última instância, pelo parlamento, que sucessivamente poderia rejeitar os diversos nomes que o PR e o CSM fossem indicando. É certo que poder de escolha dos nomes deixaria de pertencer à Assembleia da República – mas, e até por isso mesmo, esta encontrar-se-ia muito mais «liberta» para reprovar os juízes indigitados pelo CSM e pelo PR. Exige-se, para além do mais, uma maioria muito alargada para a confirmação dos juízes indigitados, o que, num cenário não descartável de fragmentação partidária, pode criar sérias dificuldades para alcançar os consensos necessários para a designação dos juízes do TC, sobretudo porque os seus nomes, como agora é proposto, seriam indicados a partir do exterior do parlamento, pelo PR e pelo CSM. Imagine-se, assim, a dimensão da fractura que se abriria, no regular funcionamento das instituições, se a Assembleia reprovasse reiteradamente os nomes de juízes constitucionais que o Presidente indicasse. Bastaria, para o efeito, que não se alcançasse a maioria de 2/3 necessária à confirmação dos nomes designados pelo PR ou pelo CSM.

Naturalmente, a primeira vítima desse conflito seria o próprio Tribunal Constitucional. Importa recordar que, no passado, já ocorreram situações em que o TC se encontrou durante longos meses – mais de um ano – a aguardar pela sua recomposição, justamente porque os partidos não logravam entender-se quanto aos nomes a eleger para o Tribunal. E para os que não possuam memória histórica, pode referir-se uma situação presente e bem actual, em que, segundo a imprensa, ocorre um bloqueio interpartidário para a substituição do presidente do Conselho Económico e Social.

Afirmar que o modelo proposto tem afinidades com o existente nos Estados Unidos é ignorar a profunda diferença – política e jurídica, mas também histórica e cultural – entre os dois países. Com efeito, a designação dos juízes constitucionais não pode ser desligada do contexto em que ocorre: num caso, um regime presidencial; noutro, um sistema semipresidencial cuja componente parlamentar, para mais, é reforçada na presente proposta. Se nos Estados Unidos já se registaram casos de «reprovação» de juízes indigitados para o Supreme Court  (o mais famoso dos quais terá sido o de Robert Bork, em tempos mais recentes), que efeitos teria, para a posição institucional do PR ou para o prestígio do CSM, se os nomes por eles indigitados fossem sistematicamente rejeitados pela Assembleia? Importa, uma vez mais, ter presente a história da nossa democracia e a experiência da realidade prática. E, nesse contexto, deve recordar-se que já ocorreram situações de conflito aberto entre presidentes e maiorias, que esta proposta poderia agudizar de forma muito grave – e, pior ainda, sem que dela resultasse necessariamente uma «despolitização» da justiça constitucional portuguesa.

11.5 – A fiscalização preventiva da constitucionalidade

No projecto existem alterações extremamente questionáveis quanto ao seu alcance, com destaque para a extinção dos Representantes da República para as regiões autónomas e, em particular, a redução dos mecanismos de garantia da Constituição (ex., eliminação da fiscalização preventiva e diminuição significativa das entidades com legitimidade para requerer a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade). Os autores consideram que a fiscalização concreta é, e deve ser, a via de acesso primordial à defesa da Constituição. Não se percebe, em todo o caso, a razão pela qual se extinguem outros meios de salvaguarda da ordem constitucional. Acaso a fiscalização preventiva não tem impedido, em dezenas de ocasiões, a entrada em vigor e a produção de efeitos de normas inconstitucionais? Para eliminar um instrumento desta natureza, com provas dadas ao longo de décadas de sedimentação institucional, seria imprescindível, no mínimo, que se explicasse que argumentos existem para advogar a sua extinção. Infelizmente, nenhum argumento é fornecido para justificar a eliminação de mecanismos de garantia que, ao longo dos anos, têm dado provas concludentes da sua eficácia para a defesa da integridade da nossa ordem constitucional.

11.6 – O referendo

O projecto em causa altera ainda o regime do referendo, em termos que aqui não irão ser analisados. Mas, por razões que se desconhecem, transfere a norma do actual artigo 115º, inserida no âmbito mais genérico da Organização do Poder Político, para o título da Constituição… relativo às competências do Presidente da República. É certo que cabe ao Presidente decidir a convocação do referendo – ou da declaração de estado de sítio ou de emergência – mas a inserção sistemática agora proposta revela um grave desconhecimento de regras elementares de técnica legislativa.

11.7 – As relações internacionais

O projecto elimina o artigo 7º da Constituição, relativo às Relações Internacionais. Sem prejuízo da importância deste preceito, cuja supressão parece totalmente arbitrária e não fundamentada, são especialmente graves as consequências desta opção no plano da justiça penal internacional.

Com efeito, a Constituição foi revista, em 2001, justamente com o objectivo de introduzir na Constituição o actual n.º 7 do artigo 7º.

Como é sabido, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional admite, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 77º, e apenas em casos excepcionais, a aplicação de pena de prisão perpétua.

Esta norma suscitou um amplo debate na sociedade portuguesa, aquando do processo de ratificação, uma vez que punha em causa a norma da Constituição que expressamente proíbe a aplicação de pena de prisão perpétua: o n.º 1 do artigo 30º.

Sendo desejo do Estado português – de resto, totalmente compreensível e louvável – integrar o grupo de países fundadores do Tribunal Penal Internacional e não sendo possível eliminar a previsão da pena de prisão perpétua – que tinha suscitado, durante as negociações do tratado, grande controvérsia –, houve que decidir como proceder à ratificação do Estatuto de Roma sem que a Constituição viesse a ser violada.

A opção encontrada consistiu na introdução do n.º 7 do artigo 7º, que, representando uma norma excepcional relativamente ao n.º 1 do artigo 30º, admite a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nos termos estritos do seu Estatuto e, com ele, naturalmente, a possibilidade, ainda que hipotética, de aplicação de pena de prisão perpétua, embora sempre condicionada pelo princípio da complementaridade.

A pura e simples eliminação do artigo 7º da CRP suscita, assim, a maior perplexidade. Não pode tratar-se de esquecimento ou desatenção, o assunto em causa é demasiado importante. Esta norma justificou uma revisão constitucional!

Será, então, que estes autores decidiram eliminar a proibição de prisão perpétua? Assaltou-nos essa perturbante dúvida. Mas não, podemos ficar descansados. Lá está, no projecto, a proibição de prisão perpétua, bem inscrita no n.º 7 do artigo 16º.

Contudo, a ser assim, com a eliminação do artigo 7º da Constituição desapareceria a norma excepcional que permite, em termos muito restritivos, a aplicação da pena de prisão perpétua.

Por conseguinte, caso este projecto fosse aprovado, o Estatuto de Roma passaria a colidir frontal e directamente com a Constituição. O Estatuto de Roma, subscrito por Portugal, não poderia, pois, ser aplicado na nossa ordem interna. E desta não aplicação resultaria, por sua vez, uma violação da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, fazendo incorrer o Estado português em responsabilidade internacional. Era isto, «apenas» isto, o resultado de uma impensada revogação do artigo 7º da Constituição da República. Caso a proposta destes académicos fosse consagrada, Portugal incorreria em responsabilidade internacional por violação da Convenção de Viena. Nem mais, nem menos.

11.8 – Tratados e acordos internacionais

O projecto propõe-se também resolver, e de uma assentada, a querela doutrinária existente quanto à distinção entre tratados e acordos.

Recorde-se que a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados admite diversos tipos de convenções internacionais, em função da formalidade exigida para a manifestação, por parte dos Estados signatários, do seu consentimento a vincularem-se a uma convenção.

A Constituição – que excluiu formas ultra-simplificadas de vinculação internacional, como é o caso da troca de notas diplomáticas – utiliza, no n.º 2 do artigo 8º, a expressão genérica «convenções» para distinguir tratados formais de acordos.

Os tratados são obrigatoriamente aprovados pela Assembleia da República. Os acordos, em contrapartida, podem ser aprovados pela Assembleia da República ou pelo Governo consoante a matéria (ou caso o Governo os entenda submeter ao parlamento).

Ora, o projecto, na sua obsessão simplificadora, elimina essa distinção, a tudo chamando «tratados».

Porém, ao eleger o tratado como a única espécie de convenção internacional, a Constituição viria tornar mais rígido (e complexificar ainda mais) o respectivo processo de adesão, ficando Portugal adstrito ao mais formal dos mecanismos de vinculação.

Por outro lado – e este é mais um esquecimento que não se compreende –, os autores mantiveram, no n.º 2 do artigo 49º do seu projecto, a expressão «regularmente ratificados ou aprovados», o que deixa de fazer qualquer sentido em face da eliminação da categoria dos acordos. Se só se admitem tratados e se estes devem ser ratificados, nos termos da alínea b) do artigo 66º do projecto, não se compreende, assim, a manutenção da referência à sua aprovação.

11.9 – A equiparação entre portugueses e estrangeiros

Outra dúvida é suscitada pela eliminação do artigo 15º da Constituição. Trata-se de uma norma-chave para compreender a equiparação de direitos entre portugueses e estrangeiros. Para além de um princípio geral de equiparação, exceptuam-se os direitos políticos e de cidadania, alargando-se depois alguns destes a categorias específicas de estrangeiros (ex. dos países de expressão portuguesa).

Trata-se de uma norma profundamente estudada pela doutrina, sobre a qual existe, aliás, abundante jurisprudência constitucional. A simples leitura de uma «Constituição Anotada» revelará a um leigo a extrema importância do preceito em causa.

No seu esforço simplificador, porventura simplista, os autores do projecto eliminam tranquilamente a norma do artigo 15º da Constituição, limitando-se a prever uma regra geral de igualdade no n.º 1 do artigo 5º. Depois, no nº 2 do mesmo artigo, remete-se para a lei a definição dos «direitos e funções que não podem ser exercidos senão por cidadãos portugueses» (sic).

Significa isto que a lei pode ampliar o exercício de direitos políticos a todos os cidadãos estrangeiros, independentemente da sua ligação à comunidade nacional? Ou, pelo contrário, que a lei estará autorizada a limitar os direitos, incluindo os direitos fundamentais, de que os estrangeiros podem ser titulares?

Seja negativa ou positiva a resposta estas interrogações, ela não parece abonar em favor da opção dos autores do projecto.

Se a Constituição não serve para nada em matéria de direitos dos estrangeiros, para quê prever um princípio geral de equiparação que não tem qualquer conteúdo útil?

À luz deste projecto, pode um estrangeiro ser Primeiro-Ministro ou Presidente da Assembleia da República? Ou, ao invés, pode a lei limitar a liberdade de expressão dos estrangeiros?

Caberá aos autores responder a estas questões. Por nós, limitamo-nos a enunciá-las, com alguma inquietação.

11.10 – A aprovação do programa do Governo

Os autores resolveram também inovar em matéria de aprovação do programa do Governo.

Como é sabido, a Constituição não obriga à aprovação do programa do Governo, exigindo apenas a sua apresentação na Assembleia da República. Tal aprovação só ocorre se parlamento assim o deliberar. Este sistema visa evitar dificuldades adicionais na formação e entrada em funções de um Governo, sobretudo minoritário.

A maior ou menor dificuldade no processo de formação do Governo caberá, em cada caso, à decisão dos deputados em funções e dos demais titulares de órgãos de soberania intervenientes no processo, em obediência ao superior interesse nacional.

Ora, os autores deste projecto, assumidamente «simplificador», resolveram afinal complicar as coisas, exigindo a aprovação do programa do Governo por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções.

Não se contesta a importância, no nosso sistema político-constitucional, de executivos com apoio parlamentar maioritário.

Todavia, não seria mais conforme aos objectivos anunciados pelos autores deixar a decisão aos titulares de órgãos de soberania competentes e democraticamente eleitos? E que dizer da manutenção da regra segundo a qual a Assembleia da República não pode ser dissolvida nos primeiros seis meses após a sua eleição? Nesse caso, a verificar-se um impasse na aprovação do programa do Governo, gerar-se-ia uma situação insolúvel, com resultados imprevisíveis, mas certamente dramáticos.

11.11 – A garantia da Constituição

O projecto reduz substancialmente a possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, como já atrás se referiu.

O seu artigo 118º anuncia ao que vem: “São inconstitucionais as normas jurídicas que violem as normas constitucionais”. A mesma norma tem reflexos na norma geral sobre fiscalização difusa (n.º 1 do artigo 105º do projecto).

Isto significa que as decisões de inconstitucionalidade não poderiam doravante fundar-se na violação de princípios constitucionais, ou seja, teriam de cingir-se à violação de normas. Tal é especialmente evidente quando se confronta a formulação proposta pelos autores com a redacção actual da Constituição.

Mas como justificar esta conclusão à luz de uma Constituição flexível, onde, a par de nomas, existem inúmeros princípios? Os autores não explicam.

Depois, e como se disse, o projecto elimina a fiscalização preventiva da constitucionalidade. Tal corresponde a uma autêntica «revolução» no sistema português de garantia da Constituição, descaracterizando-o por completo. Não se desconhecem, naturalmente, as experiências de direito comparado que não possuem fiscalização preventiva da constitucionalidade dos actos normativos. Todavia, uma alteração com esta relevância sempre exigiria ser justificada com argumentos lógicos e racionais. Contudo, nenhuma explicação nos é apresentada.

Por outro lado, ao suprimir a fiscalização preventiva, os autores não o fazem apenas relativamente às leis mas também quanto aos tratados internacionais, o que pode colocar dificuldades sérias ao Estado português no plano da vinculação e da responsabilidade externas, como já se aflorou a propósito da norma sobre convenções internacionais.

Não pode deixar de se assinalar que os autores propõem afastar o Presidente da República do sistema de fiscalização da constitucionalidade, seja preventiva seja sucessiva. Tal corresponde a uma alteração muito substancial da nossa arquitectura constitucional, obrigando a repensar o sistema de governo português no seu todo. Além disso, e uma vez que os autores, no seu labor simplificador, também eliminaram o juramento, significa isto que o Presidente deixa de ter a obrigação de cumprir e fazer cumprir a Constituição da República? Ou que o veto político passa a poder fundar-se também em razões de inconstitucionalidade? Nada disto é esclarecido, infelizmente.

Igualmente surpreendente é a eliminação das normas sobre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Pois se se mantém a fiscalização abstracta sucessiva, ao menos quando requerida pelo Provedor de Justiça ou pelo Ministério Público, quais os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade? Essa declaração teria eficácia retroactiva? E o que sucederia em caso de inconstitucionalidade superveniente? Haveria, como agora existe, a possibilidade de limitação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade? O que aconteceria quando estivesse em causa uma situação de interesse público de excepcional relevo?

Estas não são questões meramente teóricas ou académicas. Pelo contrário, são problemas que se têm colocado, dezenas de vezes, na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Sobre estas questões, de resto, já foram apresentadas teses de doutoramento nas universidades portuguesas. Não existem quaisquer vestígios dessas reflexões no projecto ora vindo a lume.

11.12 – Os limites materiais de revisão constitucional

Finalmente, tratando-se de um anteprojecto de revisão constitucional que elimina dezenas de normas sobre direitos fundamentais, compreende-se que se tenha também suprimido a norma sobre limites materiais de revisão constitucional. Mas ignoram os autores o que, desde há várias décadas, entre nós se tem escrito e debatido sobre esses limites? Sobres os duplos processos de revisão e as duplas revisões constitucionais? A dúvida final, em suma, é a seguinte: como justificam os autores a supressão das normas mencionadas em face do actual artigo 288º da Constituição?

12 – Tendo sido lançado um debate sobre a Constituição portuguesa, estas linhas procuram ir ao encontro de um desafio que o Observador em boa hora colocou à sociedade portuguesa e, em particular, àquilo que já se designou por «comunidade dos intérpretes da Constituição»

Agradecemos ao jornal Observador a oportunidade concedida para, a nosso pedido, intervirmos a título exclusivamente pessoal numa discussão que certamente será construtiva e enriquecedora para todos os que nela participarem.