Alguma coisa este país anda a fazer bem para que, por uma noite, o Coliseu dos Recreios seja dos Linda Martini. Alguma coisa anda a fazer bem porque, por hábito, para ver uma banda portuguesa na sala fetiche do solo pátrio, seria preciso que fosse a consagração. O concerto dos 20 ou dos 25 ou dos 30 anos de carreira – e só para os nomes mais seguros do mainstream. Certo. Dá-se o caso recente Miguel Araújo / António Zambujo – que mereceria todo um texto à parte – mas nada disso explica o Coliseu, de repente, entregue a uma banda de rock alternativo, de nicho, guitarras estridentes e sujas, que não passa na rádio e quase não se vê na televisão. E não porque ela faça um número redondo de anos. Apenas porque tem novo disco para apresentar.

Alguma coisa andamos a fazer bem, sim. Boa música e bom público. A primeira, bem resolvida com a composição em Português; o segundo, curado do provincianismo que lhe dizia que só podia ser bom o que viesse de fora.

Chove em Lisboa e há Barcelona-Real Madrid na televisão. As pantufas podem tirar público ao rock? Sabe-se lá. A verdade é que, nas Portas de Santo Antão, a primeira ovação da noite não será para a banda, mas para o 2-1 do Real em Camp Nou. Valha-nos que foi o Ronaldo – Nuno Álvares Pereira pode descansar em paz.

Foto: Luís Martins

Foto: Luís Martins

Lá dentro, faz-se fila para deixar o guarda-chuva no bengaleiro, pede-a primeira imperial e mata-se o tempo. A sala não enche, mas fica dignamente composta. A maioria do público andará pelos vintes, mas, ao recuar na sala, avança-se na idade: há trintões e quarentões só denunciados pelo cabelo grisalho. As camisas grossas, os ténis, os óculos de massa, são os mesmos. Tudo gente com ar de quem lê. Porque, um dia, São Johnny Greenwood tentou sabotar “Creep” esbofeteando a guitarra antes do refrão e, desde então, todos os nerds, geeks, tipos de óculos e ar de bons rapazes deste mundo souberam que também eles podiam fazer headbanging, mesmo de cabelo curto.

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Às dez para as dez, 20 minutos depois do anunciado no bilhete, André, Cláudia, Pedro e Hélio sobem ao palco. Isto ia mesmo acontecer: os Linda Martini, banda cá da casa que faz rock a sério, duro, às vezes enigmático, sem concessões, ia apresentar disco novo onde só costumam ir os grandes lá de fora.

“Sirumba”, tema que abre o álbum e lhe dá nome, serve também de tiro de partida da noite: “Segundo toque / E eu não vou, amor / Faço gala / Eu quero é ser cantor”, diz André Henriques. E para que não tenhamos dúvidas, clarifica e insiste: “Não quero ser doutor / Não quero ser doutor”. E toda a sala canta com ele, mesmo aquela parte dela que tem todo o ar de possuir, pelo menos, dois cursos e uma pós-graduação. O segundo do alinhamento é também o segundo do disco, sem inventar: “Unicórnio de Santa Engrácia”, belíssimo título para um single que já rola por aí com esta destemida assunção: “Sair a meio é meia foda / Não será de homem fingir que dói a cabeça”. E, de novo, toda a sala canta pelo menos os versos-chave, detalhe extraordinário quando falamos de um disco lançado 24 horas antes.

Antes de apresentarem a faixa três, “Preguiça”, os “Linda” falam pela primeira vez com o seu público. Surpreende-lhes a presença de tanta gente. “Sabem que o Araújo e o Zambujo estão de férias. Não vêm…”, avisam. Pelos vistos, estávamos todos a pensar o mesmo. E atiram-se à primeira recordação da noite: “Juventude Sónica”, da “Casa Ocupada” a que hão-de regressar várias vezes. “Parecemos putos / Não temos aulas amanhã”, canta todo o Coliseu, com o angst juvenil com que, noutros tempos e paragens, gritaria: “Hey! Teacher! Leave us kids alone” ou “Fuck you! I won’t do what you tell me”. Pouco depois, a sala volta a juntar-se em coro para “Amor Combate”, primeiro single da carreira dos “Linda” e de muitos registos sucessivamente reconhecidos pela crítica, mas longe, deliberada e luxuosamente longe, das atenções do “grande público”.

Foto: Luís Martins

Foto: Luís Martins

Em palco, André Henriques, Cláudia Guerreiro, Pedro Geraldes e Hélio Morais, estão assim alinhados, por esta ordem, da esquerda para a direita, à boca de cena. Todos no mesmo plano, à mesma distância do público. Não é habitual numa banda de rock. Não há front man. Ainda que André seja o vocalista óbvio, tem a mesma atenção e dignidade em palco que a bateria de Hélio Morais. Tal como Cláudia Guerreiro e o seu baixo não se escondem atrás da guitarra de Pedro Geraldes. Não é apenas uma encenação; é a tradução fiel daquilo que é a música dos Linda Martini, que resolveu o problema de casar rock e Língua Portuguesa não dando às palavras mais privilégios do que a qualquer outro som. Às vezes, o poema pode estar arrumado num canto, no princípio ou no fim da canção; outras, nem conseguir entrar.

Nos quatro temas seguintes, percorrem os quatro álbuns da carreira: “Putos Bons”, deste “Sirumba”; “Mulher-a-Dias”, de “Casa Ocupada”, que levanta a sala com o poderoso riff de abertura; regressam a “Olhos de Mongol” com “Estuque” e passam, pela primeira vez, por “Turbo Lento”, com “Volta” e aquele seu reparo irresistível: “O fado agora quer ser samba”.

Tinha passado uma hora de concerto e era preciso gerir energias. A banda passa a temas mais mornos e o público circula, vai buscar uma segunda cerveja e responde a uma mensagem. “Dá-me a Tua Melhor Faca”, do álbum de estreia, reaquece a sala para a voltar a sintonizar com a frequência certa. “Dentes de Mentiroso”, “Bom Partido” e “Farda Limpa” quase completam a apresentação do novo disco. Os “Linda” agradecem, emocionados, e atiram-se ao fabuloso “Ratos”, vindo do disco anterior, para terminar com “O Dia em que a Música Morreu”, que fecha “Sirumba”. Tudo no sítio. Tudo perfeito. Hora e meia de concerto em cheio.

Mas faltava o momento. Aquele momento que resume uma noite.

É claro que a sala estava rendida desde o primeiro minuto. É claro que pediria um encore. Mas não era nada claro, nada óbvio, que seria assim, como foi, cantando imediatamente e em arrepiante uníssono os dois curtos, mas portentosos versos de “Cem Metros Sereia”… Com a vossa licença: “Foder é perto de te amar / Se eu não ficar perto” (E aqui vale a pena abrir um parêntesis para dizer que outra qualidade dos Linda Martini é a de saber usar, talvez como mais ninguém na música portuguesa, a “f-word” e suas declinações quando elas melhor podem e devem ser usadas).

E os músicos, aquele quarteto de rapazes de ar tímido, que levaram 13 anos a chegar aqui, mas que chegaram sem qualquer cedência, reaparecem definitivamente rendidos. Cláudia agradece ao pai que não sabe se lá está, André ao filho que é a segunda vez que o vem ver, Hélio avisa que está tão feliz que está capaz de casar. Assumem o receio que tinham desta noite, o medo de encontrarem uma sala vazia. Lembram o princípio, a discussão sobre o nome da banda em casa dos pais de André, em Massamá. Confessam que não sabem como chegaram aqui. Mas chegaram. Ainda bem que chegaram.

Terminam com os dois temas vigorosos com que, em 2010, fecharam a “Casa Ocupada”: “Belarmino Vs.” (“Foste sempre pouco / Com medo de ser inteiro”) e os tão epicamente anunciados “Cem Metros Sereia”. De novo, o Coliseu cantou, a plenos pulmões e no tempo irrepreensivelmente certo, aquela letra de dois versos só, com tanto, porém, que se lhes diga.

Foto: Luís Martins

Foto: Luís Martins

Porque meia sala ainda insistiu muito, a banda voltou. Mas bastou uma canção: “O Amor É não Haver Polícia”, punk um tudo-nada mais borbulhento de 2006: “Não pedimos o fim, mas não nos importamos se acabar assim / Diz-lhe para parar aqui. / Eu queria tanto parar aqui.”

À meia-noite mais ou menos em ponto, a multidão de headbangers com estudos estava na rua. Já não chovia. Discute-se se os Linda Martini não serão hoje a melhor banda do rock português. Mas que tem de Português o rock dos Linda Martini? E já agora, não será um bocado imbecil atribuir uma nacionalidade ao rock? O rock dos Linda Martini funciona porque vem do sítio certo. Da barriga.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).