Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. E entenda-se por “pão” — trazendo o ditado para o presente e o Rio2016 — as medalhas. Ou a ausência destas. Mas entenda-se sobretudo por “pão”, hoje, a ausência de tudo, ou de quase tudo, nas condições de treino, nos apoios financeiros, uma ausência de que os atletas olímpicos se queixam, culpabilizando o Estado. O Estado, por sua vez, afirma que está a fazer o possível para que tudo mude, que muito fez até aqui e muito mudou, e que mais não faz por faltar “pão”. E desta feita o “pão” é o mesmo que falta a todas as “mesas”, a dos atletas em particular, do país em geral: dinheiro.

Para alguns, portugueses comuns, os Jogos Olímpicos foram uma desilusão. Medalhas só houve uma, no singular, o bronze de Telma Monteiro no Judo. Mas a participação olímpica de Portugal no Rio2016 não foi uma desilusão. Quanto a resultados, e mesmo sem mais medalhas para trazer ao peito na volta, nunca Portugal teve tantos e tão bons resultados, com vários atletas a conseguirem diplomas olímpicos, ou seja, a chegar a finais e concluí-las nos oito primeiros lugares.

Mas mesmo os “desiludidos” deram por si, à hora de almoço, madrugada dentro, às vezes à tardinha, quando Agosto é mês de férias e de praia, de olhos colados na TV, para ver Filipa Martins na ginástica – ainda que para muitos um conner spin ou um backflip sejam pontas-de-lança paraguaios do Benfica –; para ver Nelson Évora superar o calvário das lesões e tentar reeditar o ouro de Pequim2008; para ver Rui Bragança no taekwondo, estranhando-lhe toda aquela “coreografia” de pontapés no ar e gritinhos de mister Miyagi; ou, por fim, para ver Luciana Diniz e a égua Fit for Fun 13, a saltarem até à última pelas medalhas.

Muitos dos que os viram, dos que por eles torceram, nunca antes o haviam feito. Portugal não é, quer queiramos quer não, um país que tradicionalmente apoie o desporto. Portugal é um país de futebol, ponto. É pelo menos nisso que acredita o canoísta Fernando Pimenta, quando dele se exigiu uma medalha e acabou traído pelas algas.

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“Há pessoas que talvez só se preocupem com modalidades na altura dos Jogos Olímpicos. E provavelmente nunca viram desporto sem ser o futebol”, lembrou Pimenta. E acrescentou: “Eu gostava que todas as modalidades não conquistassem diplomas, conquistassem medalhas. Mas, como o Rui Bragança referiu, enquanto a cultura desportiva em Portugal não melhorar em termos de apoios privados – e não falo só na canoagem, mas em nome de todas as modalidades -, é difícil.”

Do taekwondo ao triatlo, da natação ao triplo salto: todos querem mais para ser melhores

Falemos então, e à boleia de Pimenta, de Rui Bragança. Poucos como Bragança foram tão críticos do Estado e do apoio (ou falta dele) que este dá aos atletas. Rui Bragança foi duas vezes o melhor da Europa. Ainda é o campeão em título. Foi vice-campeão Mundial (na categoria -58kg) de taekwondo. À parte de ser atleta, é também estudante de medicina.

E embora os 24 anos lhe permitam ambicionar a mais na modalidade, quem sabe a uma medalha em Tóquio2020, Bragança pondera deixar de competir e dedicar-se, em exclusivo, à saúde e à profissão de médico. É que tudo a quanto vai, tudo quanto vence, é pago do seu bolso. Ou do bolso dos pais. E fez questão de o relembrar no final da sua participação no Rio de Janeiro.

“Os últimos dois anos para a qualificação foram incrivelmente duros. Agora tenho de recuperar, aliviar a cabeça e depois logo se vê. Só vou [aos próximos Jogos Olímpicos] se houver condições. Podia dar, voltar a pedir aos meus pais, mas… Tem a ver com patrocínios, apoios, porque estar a fazer as coisas à maluca e bola para a frente, assim não dá. Pode ser que as coisas mudem depois destes Jogos Olímpicos. Nós andávamos a ir competir em voos low cost, a andar em hostels… Eu e o Nuno [colega de treino] podíamos escrever um livro sobre isso”, lembrou.

Sucediam-se as críticas. O triatleta João Pereira, sexto no Rio de Janeiro, também o foi. “Sinto que para conseguir uma medalha temos de ter melhores condições de trabalho, melhor estrutura”, alertou. Pereira está há uma década a treinar no Centro de Alto Rendimento (CAR) do Jamor. Mas diz que pouco mudou e muito há por mudar.

“Estou no CAR do Jamor há dez anos. Penso que aquilo estava igual há 30 anos e em dez anos não se fez nada de novo. Há novas técnicas de tratamento, como banhos de gelo, massagens, tudo o que possa melhor a recuperação. Em tudo o que seja recuperação, há muito que trabalhar. Sendo aquilo um centro nacional de treino, tinha todo o interesse em ter melhores condições. Se querem medalhas, têm de trabalhar para isso. Tem de haver condições para isso, porque nós fazemos o melhor a cada dia”, argumentou.

É tudo? Não. Na natação, Alexis Santos – o único português, a par do lendário Alexandre Yokochi, a conseguir uma medalha num Europeu; Alexis foi bronze e Yokochi prata – chegou à meia-final dos 200 metros estilos (a primeira em 28 anos) e conseguiu o terceiro melhor resultado português de sempre na modalidade. Mas Alexis Santos foi duro quando saiu da água. E esperançoso:

“Espero que agora haja uma mudança, mais apoio aos atletas, mais condições de treino, que isso é o que falta em Portugal, na minha opinião. E eu sinto na pele essa falta de apoio. Espero que em Tóquio possa ser diferente. Espero estar a lutar com estes atletas de topo, cara a cara, olhando para eles diretamente nos olhos.”

Mas se há voz, mais do que as anteriores, que deve ser escutada – e far-se-á escutar no “poder” –, é a de Nelson Évora, medalha de ouro no triplo salto em Pequim2008.

“Todos os atletas, os grandes atletas portugueses, pedem melhores condições, mas não se veem resultados. Nós sabemos que o poder é que manda nisto tudo. Nós, atletas, só somos válidos, só olham para nós, enquanto estamos na pista, enquanto entretemos as pessoas. É triste, mas é uma realidade. Nunca me vou conformar com isso. Vou ser sempre uma voz ativa para mudar as coisas. Não sou de dizer o que me convém, só porque é melhor para o meu bolso; direi sempre o que é melhor para o atletismo, pelo qual sou apaixonado desde os sete anos de idade”, atirou Nelson de chofre, desde da final em que participou e obteve o sexto lugar.

Aurora Cunha. No meu tempo é que (não) era bom

Mas foi sempre assim? Tão mau? Não. Foi pior. Muito pior. Que o diga Aurora Cunha, uma das melhores e mais medalhadas atletas portuguesas de sempre em corta-mato, meio-fundo e fundo. Isto, nas décadas de 1970 e 1980, quando o CAR do Jamor era só árvores e mato.

Nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, Aurora conseguiu o 6º lugar nos 3.000 metros. Na maratona, foi a mais duas olimpíadas, em Seul1988 e Barcelona1992, mas haveria de desistir em ambas. À parte disso, foi campeã mundial de estrada em três anos consecutivos — 1984, 1985 e 1986 — e venceu as maratonas de Paris (1988) ou Tóquio (1988). Aos títulos nacionais perdeu-lhes a conta.

Em 1976, o treinador de então, Toninho “Serralheiro”, levou-a, e a mais cinco atletas, aos Nacionais, no Jamor. E ao Diário de Notícias, há poucos dias, Aurora recordou: “Corria porque gostava, nessa altura não sonhava com o que estava para vir. Para nós era uma alegria [ir aos Nacionais], só por irmos à capital. Mas não tínhamos dinheiro para ficar numa pensão ou num hotel, e os nossos pais também não podiam ajudar. Houve um primo do Toninho, que vivia em Monsanto, que se ofereceu para nos deixar ficar em casa dele e da mulher.”

Mas os problemas de Aurora não terminaram aí. “Esse lado estava resolvido. Depois, todas tivemos um problema com os nossos pais, por irmos acompanhadas com um homem casado. Teimámos, mas foi terrível! Um empresário que conhecia a minha irmã sabia das nossas dificuldades e deu-me 7$50 para eu comprar uns sapatos de bicos, que eu até aí corria com umas sapatilhas muito duras, desconfortáveis para correr. Lembro-me de que nem sequer havia o meu número, o 36, mas eu resolvi rapidamente a questão: comprei uns 37 e enchi a frente com jornais, de maneira que o sapato não saísse… E lá fomos, três para os 800 metros, outras três para os 1500″, explicou.

À época, em 1976, Aurora Cunha nunca havia pisado uma pista de atletismo. Corria à volta de um campo de futebol, no clube da terra, o Juventude de Ronfe, de onde se mudaria depois para o FC Porto. “Quando pisámos o tartã, nós não corríamos, voávamos! Sei que logo ali bati o recorde nacional, que era da Rosa [Mota]… Ainda brinquei com os jornalistas, apesar de ser muito tímida, quando lhes disse que tinha ganho por causa da biqueira dos sapatos 37, que chegava primeiro do que eu. Fomos festejar e, no dia seguinte, seguimos para os 3000 metros. Outro recorde nacional, na primeira ocasião que pisava uma pista”, contou Aurora ao Diário de Notícias.

No FC Porto, ganhava mensalmente 1.800 escudos. Um ordenado que lhe servia para comprar os equipamentos desportivos e pagar as viagens para as provas em que competia. Mais: Aurora Cunha, para além de ser atleta, trabalhava também numa empresa têxtil em Ronfe. Começou a trabalhar com 14 anos. E só após os Jogos Olímpicos de Los Angeles se tornou profissional de atletismo e deixou de “pegar todos os dias às oito da manhã”, mesmo voltando (do Porto) a Ronfe a altas horas e depois de treinar na noite anterior à chuva e ao frio.

A propósito de treino, Aurora Cunha chegou a treinar por correspondência. E essa é uma história que recorda muitas vezes: “Sim. Quando o professor Fonseca e Costa deixa o FC Porto e regressa a Lisboa, passámos a treinar por correspondência. Havia uma confiança muito grande entre técnico e atleta. Os planos eram traçados por antecipação e eu cumpria à risca, sabendo que, se não o fizesse, não estava lá o treinador para me chamar a atenção. Mas eu sabia que ele queria o melhor para mim.”

Hoje tudo é diferente do tempo em que Aurora competia. Muitos atletas são profissionais, no atletismo e não só. E os que não são, beneficiam (ainda assim) de uma legislação — Decreto-Lei n.o 123/96 de 10 de Agosto — que lhes reconhece o estatuto de atletas de alta competição. Esta legislação prevê, por exemplo, a isenção de IRS e de Segurança Social, o apoio no pagamento de propinas escolares, bem como patrocínios a longo prazo — como o da Santa Casa da Misericórdia, coordenado pelo Comité Olímpico de Portugal –, um salário mensal ou a inclusão no Centro de Alto Rendimento do Jamor, o tal de que João Pereira do triatlo falou.

Mas pode o Estado fazer mais por estes atletas?

Estado. “Toda a gente reconhece que já estivemos muito pior”

Confrontado com as declarações de Rui Bragança, o Secretário de Estado do Desporto João Paulo Rebelo destacou que os apoios existentes por parte do Governo são os possíveis.

“Parto sempre deste princípio: olhar para trás, ver de onde vimos, onde estamos e, obviamente, ter a ambição do futuro. Os apoios são os que um país da nossa dimensão, com os nossos recursos; acho injusto compararmo-nos com outros países”, respondeu.

E enalteceu depois o atleta do taekwondo: “O que me apraz dizer é que, enquanto membro do Governo, não consigo dizer outra coisa que não seja que nós todos gostaríamos que os apoios fossem muito maiores. Agora há uma coisa que tenho certeza absoluta, o Rui Bragança é um desportista e um jovem que é um exemplo, porque é alguém que tem conseguido ter uma carreira dual, consegue ter um percurso académico exemplar e o desportivo que é muito conhecido por todos.”

O responsável pela tutela do desporto explicou ainda que os apoios são “sempre escassos porque os meios são sempre escassos”, mas salientou que há um esforço “muito grande do Estado em apoiar”. “Se olharmos para trás, certamente que toda a gente reconhece que já estivemos muito pior. Por isso, o nosso caminho no Governo deve ser esse, o da superação e procurarmos cada vez melhor”, reforçou.

Por sua vez, e concluída a participação portuguesa no Rio2016, o Chefe de Missão José Garcia destacou os resultados alcançados: “O balanço é positivo. Temos uma participação que é a melhor de sempre em termos de resultados nos seis primeiros lugares: temos dez atletas. E temos uma medalha, a da Telma [Monteiro].”

Mas Garcia reconhece, no entanto, que o Governo “não deu as melhores condições” aos seus atletas, “comparado com outros países”. “Mas aquilo que se faz, fez-se bem”, atira. Questionado sobre se há a perspetiva de melhorar os resultados para o próximo ciclo olímpico, o Chefe de Missão disse acreditar que esta é uma questão de “foro político”. “Caberá ao Secretario de Estado de Desporto e Juventude, ao Comité [Olímpico de Portugal], às federações, definir o melhor caminho para o desporto em Portugal.”

Quanto às críticas dos atletas, e sobretudo quanto às de Rui Bragança, optou por minimizar a situação: “Ele [Rui Bragança] referiu que já não consegue mais aguentar esta situação, que sem o apoio dos pais não conseguiria, mas também disse que sem o apoio da bolsa do próprio Comité Olímpico [de Portugal] não tinha chegado onde chegou. Estamos empenhados em criar as melhores condições para que os atletas consigam prolongar este apoio, porque seria uma grande perda para Portugal se acabasse.”