A 15 minutos das 21, hora marcada para o início do concerto, está uma ordeira fila de centenas de metros para entrar no Coliseu, os termómetros marcam 25 graus e o Cantona está a beber um copo no café do lado. Não é que o mundo tenha enlouquecido, mas agora as coisas estão assim: há civismo à entrada dos concertos rock, temperaturas de Verão quase no Pão por Deus e o Cantona vive em Lisboa. É isto. É aceitar e seguir em frente.

Perguntamos cá para os nossos botões se o Cantona irá ver o concerto, mas não parece. Está demasiado entretido na conversa. Mas talvez devesse. Afinal, ele e PJ vêm do mesmo tempo, dois heróis rock’n’roll, cada um à sua maneira, dos anos 90. Ela, inglesa de Dorset; ele, francês de Marselha, mas que foi realmente grande foi em Inglaterra. Ele tem mais três anos do que ela – 50 contra 47 – mas ela está igual ao que sempre foi e ele parece pai dele mesmo, pai do Cantona icónico que ainda temos num poster da “Onze Mondial” perdido lá para casa, sempre de camisola 7 e gola desafiadoramente levantada. Não lhe pedimos um autógrafo nem tiramos uma selfie; quase toda a gente no café está a fazer isso, o Eric pode ficar impaciente e por enquanto ainda temos demasiado viva na memória a imagem do golpe de karaté na boca daquele adepto imprudente para arriscar meia dúzia de dentes e o concerto. Acabamos a bica e vamos para a Polly Jean. O Eric fica no 1890, que é como o café se chama e o ano em que nos zangámos com os nossos tradicionais amigos ingleses por causa do Ultimato Britânico e em que não tivemos assim nenhuma chatice de maior com os franceses.

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PJ Harvey tinha estado em Portugal ainda bem recentemente, em Junho, no Porto. Rezam as crónicas que fez, nessa altura, um dos melhores concertos da edição deste ano do NOS Primavera Sound. À partida, o espectáculo que traria a Lisboa seria mais ou menos o mesmo: não um desfiar de êxitos para recolher o favor do público, mas a explanação de The Hope Six Demolition Project, que lançou em Abril. E assim foi: uma hora e meia de trevas e revolta, guerras, mortos, vítimas, fantasmas e injustiças que andam a assombrar Polly Jean desde pelo menos o anterior Let England Shake. O Afeganistão e o Kosovo, mas também a América e Inglaterra – a guerra que se faz e a que se deixa fazer. Rock ao negro para os tempos que vivemos, com menos guitarras e muitos tambores, em ritmo militar, saxofones e coros de vozes vindos das profundezas para serem cortados pela voz dela, como sempre meio noiva e meio bruxa, a viajar de falsetes cristalinos aos mais ásperos gritos de protesto.

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Seguindo à risca o alinhamento que tem apresentado ao longo da digressão, começou com “Chain of Keys”, “The Ministry of Defence”, “The Community of Hope”, “The Orange Monkey” e “A Line in the Sand”. Só à sexta canção pousou por um pouco o disco novo e começou a olhar para trás: quatro temas de Let England Shake e um momento mais solene, delicado, com “To Talk to You”, recuando a White Chalk, de 2007.

O público, devoto, ia dos vintes aos quarentas sem gap nem contradição, apenas o sintoma indiscutível da solidez de uma carreira invulgarmente consistente, que já atravessou mais de 20 anos sem quebras. Perante as temperaturas absurdas deste final de Outubro, a questão do aquecimento do ambiente estava, portanto, resolvida à partida, mas a performance de PJ e restantes músicos não o deixaria esmorecer por um instante. Com “Dollar, Dollar”, escuro e lânguido, voltou a The Hope Six Demolition Project. Por lá continuou com “The Wheel” e com o dramatismo de “The Ministry of Social Affairs”, só interrompendo para novo regresso a White Chalk com “The Devil”.

pj harvey

13. Foi o total de palavras que Polly Jean trocou ao longo da noite com o público no seu imaculado acento britânico: gastou logo nove de uma vez com um “I would like to introduce you to the band”, pouco antes do encore, e mais quatro que deixou fugir pouco depois: “Thank you very much”. Mas soou sincera – PJ é claramente rapariga para nem abrir a boca se não lhe apetecer. E foi por aqui, por volta da mesma altura em que libertou estas palavras, que deu as maiores alegrias à sala: “Down by the Water”, “To Bring You My Love”, “Guilty” (a única surpresa do alinhamento) e “50 ft Queenie”, de Rid of Me, o segundo álbum da carreira, vindo dum já longínquo 1993. Foi a recordação mais antiga. Não chegou a passar por Dry, o disco com que se estreou em 1992, curiosamente o ano em que Cantona emigrou para Inglaterra, ajudou o Leeds a ganhar o último campeonato e se começou a tornar realmente grande.

Às 22 e 47, acendem-se as luzes da sala. Polly Jean já não volta. A algum público parece ter sabido a pouco. Na verdade, foram 20 temas – bastante. PJ poupou nos obrigados, nos elogios a Lisboa, nas conversas, no alongar das interpretações. Foi impiedosamente directa ao assunto. Meiguices não é com ela, nem com este disco, nem com o antes disso. O que, agora que pensamos no assunto, nos faz lembrar que o Eric também nunca foi muito dado ao salamaleque. Ele devia ter vindo ao concerto – será que veio?

Quase 11 da noite de 27 de Outubro e estão 24 graus. Nos anos 90 não havia disto. Nem civilizadas filas para o rock. Nem ecrãs de telemóvel constantemente metidos entre o nosso nariz e o palco. Cada época tem os seus prós e os seus contras, mas que, às vezes, falta um golpezinho de karaté à Eric, ah, isso falta.