O Parlamento britânico aprovou hoje, quarta-feira, um projeto de lei que dá carta branca ao governo para notificar a Europa, a qualquer momento, de que o país está preparado para sair da Europa e que as negociações podem começar.

Tal como foi prometido nessa mesma sessão parlamentar, a primeira-ministra britânica, Theresa May, tornou público o relatório de 77 páginas que traça os objetivos do governo nas negociações com a Europa.

No comunicado enviado à imprensa pouco depois de o documento ter sido apresentado ao Parlamento, o governo britânico frisa que os objetivos detalhados no relatório visam “oferecer alguma certeza e clareza quanto ao processo negocial, assegurar a intenção do Reino Unido em dar continuidade à relação comercial aberta que mantém com os mercados europeus, controlar a imigração e reaver o controlo sobre as próprias leis”.

Confira seis pontos-chave em destaque no documento apresentado hoje, dedicados à imigração, questões alfandegárias, mercado único, Tribunal de Justiça Europeu, Orçamento da União Europeia e fronteira com a Irlanda. São apenas alguns dos passos da estratégia traçada pelo governo de Theresa May.

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Imigração

Os pontos 5.9 e 5.10 da secção dedicada à imigração, uma das áreas mais sensíveis de todo o cenário pós-Brexit, dizem o seguinte:

“Estamos a considerar, com todo o cuidado, todas as opções que temos disponíveis para controlar o número de pessoas que chegam ao Reino Unido da União Europeia. Como parte desse esforço, é importante que percebamos o potencial impacto destas medidas nos vários setores de atividade económica e no mercado de trabalho. Faremos, por isso, os possíveis para assegurar que as empresas e as diferentes comunidades terão a oportunidade de contribuir para o debate. É igualmente importante que se faça, previamente, uma análise dos impactos potenciais por todo o território para que possamos traçar um cenário o mais completo possível e desenvolver um sistema que funcione para todos”

E logo a seguir:

“Qualquer nova medida que seja acionada relativamente à imigração proveniente da Europa terá sempre que ter em atenção o apoio que será necessário disponibilizar a essas pessoas. Será um processo complexo e o Parlamento terá um papel central na discussão dessas matérias. Estas medidas serão implementadas de uma forma faseada o que dará às empresas e às pessoas tempo para prepararem alternativas”.

O documento refere ainda três outros pontos importantes – apesar de não referir se os europeus continuarão a ter acesso preferencial ao Reino Unido. Primeiro: que os deputados poderão votar todas as novas regras que o governo proponha nesta área e que os estudantes europeus serão protegidos, a curto prazo. Isto é, continuarão a poder pedir empréstimos para licenciaturas e pós-graduações para cursos que comecem até 2018.

Sobre as pessoas que já estão a viver no Reino Unido poderem estar em risco de terem que pedir um visto para continuarem a residir no país, e a concessão desse visto estar ou não afeta a uma avaliação ao “valor” de cada profissão, David Davis, ministro para o Brexit, ofereceu palavras aparentemente apaziguadoras. “Não vou mandar pessoas embora da Grã-Bretanha”, disse no Parlamento, conforme cita o jornalista de política do diário Daily Telegraph:

O próprio documento também destina uma secção àquela que tem sido uma das maiores preocupações das comunidades de emigrantes europeus a viver no Reino Unido:

“Assegurar o estatuto e oferecer segurança aos cidadãos de países europeus a residir no Reino Unido e aos cidadãos britânicos que vivam na união é uma das principais prioridades do governo nos próximos anos de negociações. Para isto, pedimos já a um leque de organizações, incluindo associações de expatriados, que nos ajudassem a entender as prioridades dos cidadãos britânicos que vivem em outros países europeus. Por exemplo, reconhecemos a necessidade, por exemplo, do acesso à saúde por parte dos cidadãos britânicos que vivam fora e, da mesma forma, estamos em contacto com empresas, associações e outras organizações para garantir que conseguimos entender as prioridades dos cidadãos europeus”.

Questões alfandegárias

Também aqui não há muito mais detalhes a acrescentar ao discurso que Theresa May já tinha feito a 17 de janeiro, onde traçou 12 pontos para uma saída ideal.

“Ao sair da UE, o Reino Unido tentará encontrar uma nova solução para a questão das taxas alfandegárias e das fronteiras (…) que garanta que o comércio entre os vários países se mantenha com o menor atrito possível. Há várias opções, duas delas são um acordo inteiramente novo ou a possibilidade de que o Reino Unido possa permanecer como signatário de alguns dos elementos que já existem nesses acordos“, lê-se no documento que reforça:

“É do interesse, tanto do Reino Unido como da União, que exista um acordo aduaneiro que seja mutuamente benéfico para que as trocas se continuem a fazer como agora”.

Mercado Único

Sobre o mercado único, Theresa May já tinha dito que não considera sustentável tentar manter a participação do país num sistema que pressupõe, como principal pilar, a livre circulação de trabalhadores. E também disse que não quer tentar emular o modelo da Noruega ou da Suíça, dois países que mantém acordos comerciais com a UE mas não são membros plenos. Isso volta a ficar explícito neste documento. sem que para isso tenha

“Ao contrário do que acontece em outros acordos na área do comércio, aqui não estamos a tentar encaixar dois sistemas divergentes. O objetivo é encontrar uma forma de aproveitar os pontos comuns que já temos, as leis alfandegárias já existentes e todo o sistema legal que possibilitam, tanto ao Reino Unido como aos membros da UE, que as trocas comerciais decorram sem percalços. Queremos sair da Europa mantendo um acordo de comércio livre abrangente e ambicioso com os seus membros”.

“Esse acordo pode conter elementos do atual sistema em vigor, em determinadas áreas, já que não faz qualquer sentido começar do zero quando o Reino Unido já partilha com os restantes membros da União estas regras comerciais há tantos anos. O acordo deve ser completamente reciproco e ter em conta os interesses de ambas as partes”.

Orçamento para a UE

“Assim que a saída se concretize, a decisão de como é que o dinheiro dos contribuintes será gasto será feita no Reino Unido. Como não seremos membros do mercado único, não nos será exigida uma grande contribuição para o orçamento da UE”, lê-se no inicio da secção sobre este assunto.

Um pouco mais abaixo, contudo, o governo deixa claro que “poderão existir alguns programas nos quais o Reino Unido queira participar” e, nesse sentido, “será razoável que o Reino Unido contribua com uma quantia adequada mas seremos nós a decidir essas parcerias”.

Tribunal de Justiça da União Europeia

Mais um assunto delicado. Muitos conservadores consideram que o peso desta instituição atrofia o pleno exercício da justiça nacional tendo já legislado contra a exportação de carne britânica, a favor do aumento dos impostos na cerveja e contra a redução do preço do IVA (equivalente) no isolamento térmico nas casas britânicas.

“O TJUE está os tribunais supranacionais mais poderosos dada a sua primazia sobre as leis nacionais e o efeito direito na lei da UE. A jurisdição do TJUE no Reino Unido vai acabar. Continuaremos porém a honrar todos os nossos compromissos internacionais e a seguir a lei internacional”, diz o documento.

Fronteira com a Irlanda

David Davis falou no Parlamento de “objetivo” e nada mais do que isso. Não há compromisso. Como o Observador deu conta, durante o acompanhamento minuto a minuto do debate que resultou na aprovação do calendário para o Brexit, a questão da Irlanda e da Irlanda do Norte pode ser uma das mais complexas. Neste momento a fronteira entre os dois países é praticamente inexistente, não há qualquer ponto fronteiriço, o que pode significar que os europeus, chegando à Irlanda do Norte, poderão passar livremente para território britânico.

O relatório não foca este ponto, mas “reconhece” que para “as pessoas da Irlanda do Norte e da República da Irlanda a facilidade de se deslocarem de um país para o outro é uma parte essencial do seu dia-a-dia”. Há um artigo no diário The Guardian que explica porque é que alguns irlandeses, de ambos os lados, acreditam que reintrodução das fronteiras pode trazer de volta os dias mais crispados do conflito religioso entre católicos e protestantes.