De Vinhais, em Bragança, até Fátima são mais de 400 quilómetros. É a mais longa peregrinação a pé de Portugal até ao santuário. Foi de lá que vieram as 11 atrizes de “Fátima”, o novo filme de João Canijo (estreia-se na quinta-feira) sobre outras tantas mulheres que, levadas pela fé, caminham durante nove dias de suas casas até Fátima, apoiadas pela carrinha e pela caravana onde pernoitam, fazem as refeições e tratam as feridas feitas na estrada. Canijo, que gosta de preparar os seus filmes com o mesmo rigor e a mesma minúcia que põe na encenação da realidade, instalou primeiro as atrizes (quase todas “habitués” das suas realizações — Rita Blanco, Anabela Moreira, Vera Barreto, Ana Bustorff, Teresa Madruga, Cleia Almeida, Sara Norte, Márcia Breia, Alexandra Rosa, Teresa Tavares e Íris Macedo) em Vinhais, no pino do Inverno, para viverem e trabalharem como outras tantas mulheres transmontanas que vão fazer uma peregrinação a pé a Fátima em Maio de 2016.

Foi também em Vinhais que elas fizeram um laboratório para trabalharem as suas personagens. E depois, vieram a pé até Fátima. Não uma, mas duas vezes, como conta o realizador: “Fizeram uma peregrinação real, todas elas, sendo que algumas a fizeram em toda a sua extensão. Desde Bragança. E depois fizemos uma peregrinação falsa, mais ‘soft’. De preparação para o filme. Falsa porque embora as condições fossem as reais, ou seja, elas andavam e dormiam e comiam nas condições que se vê no filme, com aquela caravana e com aquela carrinha, iam todas juntas, não iam num grupo de peregrinos reais. Iam só elas e não andavam tanto como andariam na realidade. Mas foi também bastante intensa do ponto de vista da relação entre elas. Nesse aspeto, foi mais árdua.” E depois, vieram as nove semanas de filmagens “on the road”, que foram “a destilação” dessas duas peregrinações.

[Veja o “trailer” de “Fátima”]

João Canijo não é crente e nunca tinha ido em romaria até Fátima. Para preparar o filme, fez ele próprio uma peregrinação . “E foi por a ter feito que percebi que elas tinham obrigatoriamente que fazer a delas. Senão nunca conseguiam representar e interpretar uma peregrinação sem a fazer, saber o que é”, explica. A peregrinação do realizador foi mais suave. “Foram só dois dias e fiz quarenta e tal quilómetros num dia e trinta e tal no outro. Foi em 2011, quando julgava que o filme ia ser feito”. Só que depois veio a crise.

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“O filme teve o dinheiro do apoio em 2011, mas durante a crise ficou bloqueado. Por outro lado, também por causa da crise, deu-se a feliz coincidência da estreia ir agora coincidir com o centenário das aparições e com a vinda do Papa. Mas foi absoluta coincidência. O filme devia ter saído há dois anos.”

O autor de “Sangue do meu Sangue” nunca pretendeu fazer um filme explicativo, analítico ou crítico do fenómeno de Fátima. Nada do espírito de “Fátima Story” ou de “As Horas de Maria” por aqui. Esta narrativa de uma peregrinação inteiramente feminina radica “na ideia de filmar as relações de grupo, num grupo de mulheres em situação de tensão extrema. Pensei em várias coisas e de repente veio-me a epifania: evidentemente, é uma peregrinação a Fátima a pé. Depois disso apareceu outra coisa tão importante como essa: a relação com a necessidade de fé. E isso tornou-se tão importante quanto as relações entre as mulheres, até porque são paradoxais.”

E aqui entram em cena o esforço sobre-humano, o cansaço físico e a erosão psicológica, as alianças e as fricções entre as personagens, que vão levar inclusivamente à dissidência de uma das personagens, Céu, interpretada por Anabela Moreira. Nesta peregrinação, diz Canijo, “tirando o ritual de rezar o terço e de alguns cânticos, fala-se muito pouco de religião”. E tricas, zangas, confrontos e ruturas, é o que há mais. “Uma peregrinação feita em nome da fé agudiza os conflitos, porque tornam-se deslocados, condenáveis. E dissonantes.” Até as personagens de Márcia Breia e Sara Norte, avó e neta, que não são particularmente crentes e têm a seu cargo a carrinha e a caravana de apoio, se veem envolvidas nas querelas.

O realizador, João Canijo

O realizador defende que a peregrinação a pé a Fátima é algo caracteristicamente português, que não pode ser comparado com qualquer outra peregrinação, como a que se faz a Santiago de Compostela, por exemplo. Onde esta “tem como principal componente o encontro consigo próprio e a meditação sobre a fé”, a que se faz a Fátima tem a ver “fundamentalmente com o sacrifício. E isso dá um grande conforto em relação à necessidade de fé.” E há alturas em “Fátima” em que o comportamento das 11 mulheres parece mais o de pessoas que estão envolvidas numa prova de desporto “sui generis” – a caminhada radical – quer querem ganhar a todo o custo e ainda estabelecer um recorde, do que o de gente que vai a um santuário religioso levada por um impulso místico, para ali ter uma experiência espiritual ao mesmo tempo pessoal e coletiva.

[Veja uma reportagem sobre uma peregrinação a pé a Fátima]

O filme tem um argumento “completo, onde está tudo, só que é como um mote para a improvisação, como no jazz. No filme é praticamente tudo improvisado, embora elas respeitem tudo o que tinha que se passar e quando em cada cena”, continua João Canijo. Representação e realidade misturam-se em “Fátima”, um filme que o realizador quis deliberadamente que “gerasse essa confusão”. Logo, alguns dos conflitos (e não só) a que estamos a assistir aconteceram mesmo, não são encenados.

“Essa foi a ideia inicial de juntar um grupo de mulheres que estivessem que ficar juntas 24 horas sobre 24 horas. Quando eu lhes apresentei o filme, elas reagiram todas bem. Depois, as reações durante a peregrinação é que foram díspares… E as soluções encontradas para as resolver também foram.”

“Fátima” tem versões para cinema (uma mais longa, com 200 minutos, e outra mais curta, com cerca de 150) e para televisão (cinco episódios, com quase uma hora cada, para passarem na RTP em cinco dias seguidos, de segunda a sexta-feira). “Começámos a montar a fita em Junho e acabámos no fim de Setembro. Tínhamos muitas horas e fomos depurando. Ainda chegámos a fazer uma projeção de quatro horas e 10 minutos. Cortámos e fizemos uma de três horas e 48 minutos, e a seguir chegámos à versão final da versão longa, e depois cortámos radicalmente para a versão curta, o que foi difícil, mas teve que ser”, explica Canijo. A versão longa para cinema tem mais cenas cómicas e de acampamento. “Foi nestas que eu consegui fazer exactamente aquilo que queria. A andar, acho que não tem mais. A versão curta tem, penso eu, menos densidade que a longa. Porque os conflitos, que são os mesmos que existem na curta, são mais densos já que existem antecedentes. E tem outras cenas sem conflito, o que também lhes dá mais densidade.”

Dir-se-ia que depois de “Fátima”, os limites da contiguidade da encenação da realidade com a realidade propriamente dita não poderiam ser levados mais longe, mas João Canijo não está de acordo, e vai continuar a esticar a corda: “O próximo filme vai ser uma encenação do real em termos da veracidade das personagens. Isso vai ser levado mais longe do que neste. Elas são como são e elas são o que são. E depois há um desafio que, mais do que isso, é uma necessidade minha. Quero fazer um filme como fiz o ‘É o Amor’, praticamente sem equipa. E vai ser só com mulheres também.” Até lá, ficamos com “Fátima”. Que poderia ter como subtítulo: “2016: Uma Odisseia na Estrada”.

“Fátima” estreia-se na quinta-feira, dia 27 de abril