Bruno Nunes quis pôr fim à teoria que há muito circula nos corredores do Chega, assente na ideia de que se prepara para fazer frente a André Ventura à primeira oportunidade, e aproveitou o livro Chegados aqui! para o “desmistificar”, recusando a “difamação” de que diz ser alvo e jurando lealdade ao presidente do Chega. Esta é a primeira vez que um deputado ou dirigente do Chega escreve sobre o partido, desta vez na primeira pessoa, e com o prefácio de André Ventura.

“Desde que acompanho [o André Ventura], e já desde 2017, fui também alvo de tentativas de difamação ou alvo dos ataques cerrados feitos junto dele”, denuncia, enquanto acrescenta que passou ao presidente do partido uma espécie de cheque em branco sobre o seu futuro dentro do partido: “Um dia disse-lhe que — se por algum momento tivesse 1% de desconfiança sobre mim ou sobre a minha conduta — seguiria o meu caminho fora do partido. Sorriu, olhou para mim e afirmou: ‘Eu conheço-te! Foca-te no teu trabalho que o tens feito bem'”, conta o deputado do Chega no livro, que tem um prefácio de André Ventura.

Ciente de que o presidente do Chega “lida mal com a mentira” e “não tolera traições” — Bruno Nunes chega a lembrar no livro que Ventura costuma usar a frase “Roma não paga a traidores!” —, o deputado fez questão de não ignorar o que se diz sobre si, tentando desconstruir a tese de que se prepara para disputar a liderança contra André Ventura à primeira oportunidade. Conta que está ao lado de Ventura desde a corrida à Câmara Municipal de Loures — o momento que marca a viragem mediática daquele que era na altura candidato do PSD — jura-lhe lealdade, recusa que o poderá atraiçoar e quis escrevê-lo de forma cristalina.

“É impensável dentro do Chega existir alguém que o consiga substituir, sabemos e ele sabe que esse dia chegará, mas ao contrário dos outros partidos, no Chega a questão da liderança é um assunto arrumado“, escreve Bruno Nunes, que descreve o líder do partido como o “elo de união entre todos”, como o homem que fica com as “decisões mais complexas e difíceis de tomar”, sendo até é “capaz de ouvir e tentar entender os pontos de vista dos seus pares, mas puxa para si a decisão final, como qualquer líder deve fazer”.

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Perante uma plateia composta no auditório Almeida Santos, na Assembleia da República, e já na presença de André Ventura (que tinha cadeira marcada na primeira fila e compareceu, apesar de ter chegado mais tarde devido a um compromisso profissional), Bruno Nunes resumiu todos os elogios espelhados no livro numa frase: “Os partidos são os homens e o Chega é André Ventura e André Ventura é o Chega.”

“Já todos ouvimos que, quando não escrevemos a nossa história, alguém escreve por nós e eu sou daqueles que tenho muitas histórias escritas sobre mim e algumas até a mim me surpreendem, [porque] de facto ou tenho uma segunda vida ou sou sonâmbulo”, ironizou, para sublinhar que “uma frase mal escrita aqui dá direito a um capítulo no jornal a falar que existe uma enorme divisão e afastamento entre Bruno Nunes e André Ventura e que um dia em farei um assalto tremendo [ao poder]”.

No livro, a passagem sobre o tema até é curta, ainda que mais do que suficiente o deputado trazer a questão a público na primeira pessoa e fazer a sua defesa. Na apresentação do livro também optou por não ignorar o elefante na sala e, em público, perante, testemunhas e jornalistas, assinou a declaração de interesses numa tentativa de colocar um ponto final nas dúvidas sobre as suas intenções.

Em boa verdade, a tese que corre internamente começou por ter reflexo nas redes sociais, chegou à comunicação social e foi alimentada com algumas decisões de André Ventura vistas por pessoas dentro do partido como uma intenção de não ser dado demasiado poder (ou mediatismo) a Bruno Nunes. Em primeiro lugar, é uma das poucas figuras centrais no partido que não tem lugar na direção nacional, depois porque, há poucos meses, o presidente do partido o tirou de cabeça de lista por Setúbal para o meter no sétimo lugar da lista por Lisboa — posição que o Chega acabou por eleger, mas que não era garantida. Mais recentemente o deputado perdeu o lugar de vice-presidente na bancada parlamentar, porém, nesse caso, a decisão acabou justificada pelo líder parlamentar através da não acumulação de cargos, já que foi indicado para presidir a uma comissão na Assembleia da República (uma das três a que o partido tem direito).

O que Loures uniu nada separa?

No livro Chegados aqui!, Bruno Nunes escreve na primeira pessoa, conta como entrou na política à boleia da influência do pai, como se tornou militante e dirigente do CDS e de como se desfiliou na mesma altura em que Manuel Monteiro saiu da liderança. Admite que nos anos seguintes o “bichinho” da política não desapareceu, ainda alinhou numa candidatura ao Parlamento Europeu, porém o regresso definitivo estaria para breve e seria a dimensão geográfica a ditar o futuro. Loures, o local que colocou André Ventura no mapa da política nacional.

Em 2017 foi convidado pelo PPM para ir nas listas da coligação PSD/CDS/PPM à Assembleia Municipal de Loures e, quando perguntou quem era o cabeça de lista à câmara, a resposta foi André Ventura. Só o conhecia pela ligação ao Benfica e ao comentário na CMTV e, tendo em conta o lugar não elegível não aceitou — Não fazia sentido assumir um compromisso quando o partido nem sequer teria representação, estaria apenas a dar a sigla para que fosse possível ir como AD”.

Mas a entrevista ao jornal i (com o título: “Os ciganos vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado”) mudou o rumo da vida de Ventura e também de Bruno Nunes. Assunção Cristas viria a retirar o apoio a André Ventura e Gonçalo da Câmara Pereira, segundo conta o agora deputado, ligou-lhe a pedir opinião sobre o que fazer com o PPM. Do outro lado do telemóvel ouviu: “Vamos com ele, o homem tem razão  e tem coragem, vamos a jogo e acho que devíamos fazer um comunicado de apoio.” Bruno Nunes aceitou entrar na lista e acabou eleito deputado municipal, com André Ventura a vereador — cargo ao qual acabou por renunciar mais tarde. Bruno Nunes sentencia que o “objetivo era claro e já estava em marcha na cabeça dele, criar um partido político“.

E assim foi. Com o Chega ainda em processo de legalização, André Ventura foi o cabeça de lista da coligação Basta às eleições europeias. Não foi eleito, mas estava dado mais um passo para o arranque do partido que meses depois teria um deputado único na Assembleia da República. Dois anos mais tarde, com o chumbo do Orçamento do Estado em 2021 e com Marcelo Rebelo de Sousa a precipitar eleições, o Chega viu-se na posição ideal para crescer. Bruno Nunes conta que o ambiente era de “nervosismo” na sala do Hotel Marriot onde assistiram às primeiras projeções da noite eleitoral de 30 de janeiro de 2022.

“O terramoto político estava a acontecer contra a vontade dos partidos do sistema, perante o olhar e expressão de ressabiamento dos comentadores políticos nas televisões que agonizavam e expressavam o seu veneno contra o líder do Chega e a sua equipa”, escreve, numa noite que recorda ter ficado entre um “misto de enorme alegria e frustração” por dois distritos onde ficaram perto de eleger o segundo (Braga e Setúbal). Estava cumprido o “sonho de criança” que assumiu no livro: ser deputado.

Dali a poucos dias a “espécie rara” dos deputados do Chega estava no Parlamento como a terceira maior força política portuguesa. Bruno Nunes recorda a sala ‘conquistada’ ao CDS, as pessoas que ignoravam ou não falavam aos deputados o partido, o facto de Augusto Santos Silva ter dedicado parte do seu discurso de tomada de posse como presidente da Assembleia da República ao Chega, passando a ideia de que é uma “ameaça à democracia” e de trazer “fantasmas do passado” — tornar-se-ia um alvo do Chega (e uma festa quando não foi eleito nas últimas eleições).

Bruno Nunes conta que o sentimento vivido no grupo parlamentar é de “união”, que a “unanimidade” aparece quando André Ventura toma uma decisão, independentemente das trocas de ideias anteriores, e explicou na apresentação do livro que o Chega está pouco preocupado em ser chamado de populista, justificando que serve de “megafone do povo” e não precisa de “aflorar” o discurso ou as bandeiras. “Independentemente do que diga o PSD, se há partido humanista somos nós, dizemos sempre o que as pessoas pensam, somos parte do povo”, apontou.

No livro, critica o PSD por, principalmente nas mãos de Rui Rio, ter “destruído a retórica da direita” e explicou durante o evento de apresentação que o Chega não está onde está porque a esquerda falhou e sim porque a “pseudo-direita falhou redondamente e continua a falhar”. Bruno Nunes não tem dúvidas de que “o tempo veio dar razão à visão que André Ventura teve de criar uma alternativa aos partidos que durante mais de 40 anos dividiram a governação em Portugal”.

Bruno Nunes escreve que o Chega é uma “lufada de ar fresco” na política nacional e André Ventura, no prefácio do livro Chegados aqui!, fala numa “realidade que parece incontornável“, que o partido “veio para ficar e abanar definitivamente o sistema político”. Pela primeira vez, um deputado do Chega escreveu sobre o partido, sem referências específicas a questões internas ou a decisões, mas com uma visão sobre quem está por dentro de um fenómeno da política portuguesa.