Da mesma forma que o doutor Pavlov tocava a sineta à beira do seu cão com um propósito, o uso conjunto das expressões “passagem de ano” e “programação televisiva” pode fazer-nos salivar. Não tanto pela exibição estafada dos seios dos cabarés Lido e Crazy Horse mas à conta de dois momentos concebidos por Herman José nos anos 1990 e 1991.
Primeiro com o mítico “Crime na Pensão Estrelinha”, composto por plot principal que levava ao homicídio com trana-tranita e sketches avulso, e depois com o Hermanias especial de fim de ano, de onde saltaram José “eu é mais bolos” Severino ou Carlos Carrapiço, poeta naïf alentejano.

Entretanto, muita coisa mudou, vieram dezenas de novos canais, a programação das televisões atomizou-se e agora há escolhas para todos os gostos, embora seja mais ou menos reconfortante perceber que ainda há espaço para os clássicos de época das festas.

O cinema

É o tópico dominante da programação desta altura, começando pelo Natal e acabando na ressaca de 1 de janeiro. Ano após ano, milhares de bocas a saberem a papel de música recuperam dos erros etílicos e gastronómicos cometidos e sorriem de forma relativamente condescendente em direção ao plasma. Mas tudo começa a aquecer no dia 31, sobretudo quando o ano novo é sinónimo de fim de semana prolongado. Por exemplo, a SIC aposta forte no cinema de animação com “Divertida-Mente”, golpe de génio da Pixar em versão portuguesa, programado para as 14h00, seguindo-se-lhe o mais mainstream “Tartarugas Ninja — heróis mutantes” às 16h00.

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Sem prescindir do programa “Vida Selvagem” que marca o après midi da sua emissão, o canal de Carnaxide é o que aposta mais forte na sétima arte em vésperas de 2018, acompanhado naturalmente pelos canais da especialidade. O Hollywood começa a tarde de 31 com o amoroso “Happy Feet” (14h00), para logo trocar as voltas às crianças com a transmissão de “Ted” (15h10), um urso de peluche pouco amigo de épocas de concórdia. Tudo regressa aos eixos com “Gladiador” (17h05), peplum modernaço, que pode já reivindicar o título de clássico. Ainda no dia 31, destaque para a aposta de rasgo do Fox Movies, que programou para as 18h23 (?) a fita de culto “El Mariachi”. Um filme que ficou mais barato do que um salário médio de directora de IPSS. Já o AXN aposta forte no universo Marvel, que vai dominando o cinema popular dos nossos dias, com a exibição de “Thor, o Mundo das Trevas” (23h27).

Já em 2018, a programação de cinema continua a ser preponderante na SIC, que transmite às 14h00 “À Procura de Dory”, spin-of do aclamado Nemo, para prosseguir a emissão com “Sozinho em Casa” às 15h45. E não, não é uma gralha. O filme vai mesmo passar novamente em canal aberto, sinal de que a teoria marxista da história repetida em farsa e tragédia tem boa base de sustentação.

Às 17h30 temos “007 — Spectre”, sinal de que nem tudo é passadismo e repetição. No dia 1 a TVI também aposta forte em filmes populares, e começa por agradar à criançada com os Mínimos (14h00), para logo piscar o olho aos mais velhos com “Missão Impossível — operação fantasma” (15h45) e “Velocidade Furiosa 7” (18h00), a saga com ainda mais sequelas do que o casamento de Elisabeth Taylor. Essa sim estrela intemporal das telas, tristemente ausente da programação deste ano.

Nota ainda para aposta de ano novo do canal AXN, que inicia uma maratona de Indiana Jones às 19h19, indo dos “Salteadores da Arca Perdida” à “Última Cruzada” num ápice e sem direito a zapping.

Os clássicos, um tour de force por Portugal e os documentários

Nesta altura do ano, também sabe bem alguma previsibilidade. E é por isso que saúdo com especial carinho a transmissão pela RTP 1 do concerto de ano novo em Viena (dia 1, às 10h30), bem como mais uma gala do circo de Monte Carlo à mesma hora na SIC. Também a RTP2 há-de ir a Monte Carlo espreitar os trapézios, mas só às 21h30.

Mas de alguma forma a TVI apostou numa espécie de formato surpresa para a época e no dia 31 haverá um Somos Portugal em directo que começa às 12h30, faz um intervalo para o Jornal da Uma, e prossegue das 14h00 até às 20h00, para ficarmos com a certeza absoluta de que não somos outro país qualquer, sobretudo quando queimamos os últimos cartuchos de 2017. Somos Portugal e seis horas e meia de transmissão, a juntar aos 800 e tal anos de história, atestam-no. Aliás, só para reforçar o orgulho nacional, a RTP 1 repete a transmissão do Festival da Eurovisão às 12h30 de
dia 31, só naquela de relembrar quem é que enxovalhou as cantigas com lantejoulas e o euro dance teen pop.

Mas o que parece verdadeiramente inovador este ano é o compromisso com o formato documentário. Nesse sentido, e ainda em sede patriótica, a RTP 1 alinhou para o dia de ano novo (14h00) o filme 10 de Julho, revisitação da vitória portuguesa no Euro 2016. Já a RTP 2 aposta forte em National Gallery, uma visita documental de três horas ao importante museu britânico (dia 1 às 14h00) e aproveita para revisitar as memórias de cabaré — vide início deste texto — com a exibição de Mistério no Moulin Rouge (dia 31 às 23:00). Menos seios, mais suspense, suponho.

O dobrar da meia-noite

Quando os sinos repicaram em homenagem a 2018, haverá formas muito distintas de atravessar de um ano para o outro na companhia dos canais generalistas. A RTP1 aposta as duas fichas num especial 5 Para a Meia-Noite em directo do Terreiro do Paço, conduzido por Filomena Cautela, ao passo que a SIC entra no novo ano de braço dado com Filipe La Féria, responsável por uma versão musical de um clássico de Júlio Verne. A Volta ao Mundo em 80 Minutos começa às 21:30 de dia 31. No caso da TVI, o fogo à peça faz-se com a dupla que oferece mais garantias. Tão oleados como Bonnie e Clyde, Simon e Garfunkel ou José Rodrigues dos Santos e Wikipédia, Cristina Ferreira e Manuel Luís Goucha conduzem uma emissão de Réveillon de A Tua Cara Não Me É Estranha.

Uma coisa é certa, neste período de passagem de ano há muito por onde escolher e deambular com o comando à distância. Entre valores seguros e apostas mais ou menos arriscadas, vai ser possível fazermos as nossas resoluções de ano novo bem alapados no sofá, tomando por boas as inspirações hertzianas. É que aquelas promessas bem-intencionais as de dietas rigorosas, idas rotineiras ao ginásio e abandono definitivo do tabaco costumam durar tanto como a carreira do Macaulay Culkin.

Pedro Vieira é guionista, apresentador de televisão e ilustrador relutante