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HUGO AMARAL/OBSERVADOR

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Artur Batalha. O príncipe de Alfama é fadista

Ainda em miúdo cantou para Amália e depois fugiu, envergonhado. Hoje passeia-se pelo bairro onde vive e ouve-se "ó Batalha, és lindo". É um dos nomes do festival Caixa Alfama, este fim-de-semana.

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Era no número 78 da rua de São Miguel, em pleno coração de Alfama, que Artur Batalha se sentava a ouvir os pregões das varinas. Achava graça aos versos que criavam e à sua esperteza afiada da vivência do bairro. Passava ali os dias a ajudar a mãe na banca de peixe e tomava conta das irmãs. Estávamos em 1960 e o pequeno Batalha tinha apenas nove anos. “Antigamente Alfama tinha aquelas varinas na rua de quem toda a gente gostava, reuniam-se e cantavam. E eu lá ia”, recorda ao Observador o fadista, um dos nomes incontornáveis da história do fado, que atua esta noite no Caixa Alfama, em Lisboa (o festival continua no sábado).

Em casa, o pai e o avô Batalha também gostavam de recitar. “O fado entrou na minha vida porque o meu avô paterno era carroceiro e cantava. Não era profissional mas gostava de cantar e o meu pai acompanhava-o”, diz-nos Artur. Anos mais tarde, o pai embarcou no navio Cabinda, que ia para Casablanca, e nunca mais apareceu. O pequeno Batalha continuou a juntar-se às rodas de cantorias no bairro para “matar saudades”. Era o irmão mais velho e tinha que ajudar a família, não havia como escapar ao papel principal. “O fado era estado de alma, era um deitar cá para fora”, descreve.

A chegada à taverna

Até que um dia, já com 14 anos, desperta a atenção de João Ferreira Rosa, um dos maiores nomes do fado tradicional. “Quando acabei de cantar, ele chamou-me e convidou-me a cantar no restaurante dele. Fiquei todo envergonhado mas disse que sim. Era a melhor casa de fados do país”, afirma Artur Batalha. E foi na Taverna do Embuçado, em Alfama, que Artur se apresentou oficialmente ao público. “A dona Gina era o braço direito do João. Levou-me ao alfaiate para fazer o fato e para pôr-me a cantar. Era tão pequenino”, afirma que cantava “meio ilegal” por ser tão novo mas, na verdade, era apenas a melhor forma de começar. Uma questão de tradição.

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Amália Rodrigues, João Braga ou Beatriz da Conceição eram apenas alguns do nomes que pôr lá passavam. A rainha do fado era cliente habitual do espaço de João Ferreira Rosa. Foram muitas as vezes que lá ia para almoçar ou jantar. Um dia, o dono mandou o pequeno Artur cantar para a “dona Amália”. “Eu muito envergonhado disse que sim mas nem sabia cantar direito. Para dizer ‘amor’, dizia ‘amoriii’. Era a linguagem bairrista”, explica. Quando terminou o fado, a dona Amália bateu-lhe palmas. “Olhe que ela não era se manifestar”, conta Artur. E depois? Depois fugiu para a cozinha do restaurante com vergonha.

As noites passadas no Embuçado foram uma importante escola. Deram-lhe uma voz mais afinada e ajudaram-no a ganhar mais experiência no campeonato do fado. Batalha começou a ganhar notoriedade. Em 1971, participou na Grande Noite do Fado no Coliseu dos Recreios, de onde saiu em braços. “É um bocado difícil explicar o que senti. Foi uma emoção muito grande. Era o grande palco e aquilo naquela altura vinha abaixo. Era tanto povo, tanto povo. Aquilo era uma loucura”, afirma, recordando a noite em que ganhou o concurso. “Atiraram-me ao ar, puxaram-me a gravata, a camisa para o lado. Andaram comigo em ombros dentro do Coliseu”, conta.

Teve um coração e perdeu-o

A sua voz fez de temas como “Sete espadas, sete ventos”, “Hoje morreu um poeta”, “Tempos de criança”, “Tive um coração, perdi-o” verdadeiros sucessos. Fernando Farinha, um dos fadistas da época, era amigo de casa. Um dia, ao jantar com a família Batalha, perguntou-lhe se tinha alguma música dedicada aos filhos. “Pegou numa caneta e papel e escreveu ali o poema ‘Tenho dois putos’ dedicados aos meus filhos gémeos”, relembra. Artur Batalha não se cansa, aliás de recordar a importância das referências do fado dos anos 60 no seu percurso.

https://www.youtube.com/watch?v=q-7zxa6jotI

A maioria das suas canções falam sobre a solidão, a pobreza extrema, o amor entre homem e mulher, com base naquilo que “via e vivia no seu bairro”. “Vim ao mundo para sofrer. O fado compensa e alivia a vida”, explica. Artur não consegue eleger uma canção dentro do seu vasto repertório. “Canto aquilo que sinto. O meu repertório é escolhido por mim. Tenho poemas gravados. É raro escrever. A idade e o miolo também não ajudam”, diz-nos, entre risos.

Há quase 40 anos que não grava. Esteve afastado do palco durante muitos anos por problemas com drogas. Voltou há 12 anos e retomou os espetáculos em casas de fado de Lisboa. A última vez que gravou foi em 2010 a convite da Mariza. “Ela quis gravar comigo a duo o fado ‘Promete Jura’, recorda. “O Artur é grande e faz parte da minha caixa de memórias”, referiu em palco no concerto que deu no Coliseu do Porto.

Um dia, o dono da Taverna do Embuçado mandou o pequeno Artur cantar para a “dona Amália”. “Eu muito envergonhado disse que sim mas nem sabia cantar direito. Para dizer 'amor', dizia 'amoriii'. Era a linguagem bairrista”

É fã dos fadistas da nova geração como Carminho, Ana Moura ou até FF. Diz que há muito talento nas novas caras. “Não se devem agarrar tanto ao que os outros fizeram. Devem criar coisas novas. Têm que ter poder criativo e humildade também”, diz.

Batalha foi o mais jovem de uma geração de grandes nomes do fado português e dos poucos ainda vivos. “Já conheci vários reis. O Fernando Farinha, o António Rocha, eram os grandes reis do fado menor. O Fernando Maurício também. Os reis morrem e tem os príncipes que subir ao trono, não é”, afirma, entre risos.

Ganhou o título de “príncipe do fado”. “Foi o povo que me colocou este nome. Trabalhei com os maiores nomes e valores do nosso país. Sou uma pessoa humilde com estudos reduzidos mas consegui alcançar um estatuto”, comenta. “Era o mais novo. Todos desapareceram. Aprendi muito com eles. Eram uns artistas. Ficaram na história”, acrescenta.

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Entre o número 78 e 76 da Rua de São Miguel há agora uma fotografia sua impressa em calcário

Andou pelo país fora. Esteve ainda nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Espanha e Inglaterra, por onde passou pela última vez há nove anos. “As pessoas querem-me e contactam-me diretamente. Chegamos ou não acordo. Vou para governar a minha vida. Não é para conhecer países. Há muita gente que vai por vaidade. E depois acabam por estragar o cachet dos outros. Não é por maldade que digo isto”, diz Artur.

Tu és lindo, ó Batalha

Mas é na zona histórica que se sente em casa. São as ruelas, escadinhas, vielas, travessas da sua vida. No coração de Alfama é preciso fôlego para andar rua acima, rua abaixo. A calçada portuguesa incerta não ajuda e obriga a curtas paragens. A vizinhança aproveita a deixa para cumprimentar-se e dar duas de conversa. Há direito a beijinhos, abraços e até alguns piropos. “Tu és lindo, ó Batalha”, atira uma senhora. “Olá querida. Ainda moras aqui?”, pergunta Artur Batalha. Em cada esquina alguém reconhece o “Príncipe do fado” e pede mais um beijinho. “É o meu bairro. Estou em casa aqui”, diz. No típico bairro alfacinha, respira-se fado, é cliché mas também é verdade. E Batalha passeia-se por ali como peixe na água.

Um dia, ao jantar com a família Batalha, Fernando Farinha perguntou-lhe se tinha alguma música dedicada aos filhos. “Pegou numa caneta e papel e escreveu ali o poema 'Tenho dois putos' dedicados aos meus filhos gémeos”

É numa dessas casas de fado que Artur é novamente abordado. Mas, desta vez, não é por gente do bairro. É uma turista francesa que pergunta ao proprietário do restaurante Alfama Grill quem é. “É um dos maiores nomes do fado. Tire uma foto, vá”, diz. Batalha esboça o maior sorriso e leva mais dois beijinhos com sotaque. “Os turistas adoram fado. Quando há pessoas que têm qualidade de voz, eles apreciam e reconhecem”. Confessa que o problema é que muitas das vezes são enganados e levados para casas de fado com “gente que canta mal”. “É o comércio para os donos de casas que paga 10 ou 15 euros de cachet aos artistas”, critica.

O que Artur gosta mesmo é de caminhar pelas ruelas do bairro, de falar com a sua gente e de ser acarinhado. “Ó Artur, tu agora vais para Hollywood? E já lá foste às Américas!”, grita uma outra moradora de Alfama. Batalha ri-se e manda-lhe um beijo. É só mais um, isto repete-se uma e outra vez.

“É disto que ele gosta”. Quem o diz é Maria Augusta, companheira de vida há 26 anos e até manager. “É ela que sabe tudo”, diz. Prepara a agenda, ajuda-o para os concertos, confirma entrevistas e cantarola os versos que lhe falham na memória. “Conhecemo-nos na coletividade do meu bairro. Tinha 16 anos quando o vi pela primeira vez”, recorda a esposa. E Artur é de boa memória: “Ela estava de saia e com os joelhos à mostra. Olhei para aquelas pernas…”. Mas só anos mais tarde é que se juntaram.

Foi ao lado “da Lena” que recebeu a última homenagem pelo presidente da câmara de Lisboa no dia 12 de junho de 2016. Artur foi escolhido para integrar a exposição permanente Alma de Alfama, com retratos da fotógrafa britânica Camila Watson. Uma exposição para preservar e perpetuar a tradição, mostrando 20 rostos e histórias de gente do bairro. Entre o número 78 e 76 da Rua de São Miguel há agora uma fotografia sua impressa em calcário na parede. Ali, exatamente onde há 56 anos a mãe vendia peixe e Artur começava a cantarolar os primeiros fados da sua vida.

Artur Batalha atuará no palco principal do Caixa Alfama em homenagem à fadista e amiga Beatriz da Conceição, no sábado. O festival realiza-se a 23 e 24 de Setembro no bairro de Alfama em Lisboa, com mais de 40 fadistas distribuídos por 10 palcos. Toda a informação aqui. O Observador vai acompanhar o festival.

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