Os comunistas comem crianças ao pequeno-almoço? Não, claro que não. Então qual o problema de admitir que participem numa solução de governo? Até pode ser que o Mário Nogueira se torne numa pessoa razoável…

E não são os bloquistas aquela malta porreira com que se bebe uns copos no Bairro Alto ou no Frágil? Sim, e também sabem comportar-se à mesa (só não gostam é de gravatas). Então, porque não integrá-los no “arco da governação”? A Catarina até tem aquele ar tão frágil e quase amoroso…

Afinal, acrescenta-se, não se pode descartar 18% do eleitorado.

Pois é. A democracia amolece-nos, a memória esvai-se, a cultura política rareia e há demasiada preguiça para tentar perceber que o que parece igual é, afinal, radicalmente diferente. Por isso, nestes dias em que um líder do PS que perdeu tudo numas eleições procura salvar a sua pele criando a ficção de uma “maioria de esquerda”, é bom termos bem presente o que está em causa. E percebermos que a aparência não é tudo: o piano e a vista para a Acrópole de Varoufakis não evitaram que tivesse levado a Grécia à quase catástrofe, pois o que conta não é ir de mota para as reuniões do Governo, o que conta são as ideias erradas que se tem dentro da cabeça.

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Vamos lá então esclarecer alguns equívocos e desmontar algumas mentiras.

A falsa ideia da “maioria de esquerda”

De repente surgiu a ideia de que existe em Portugal uma “maioria de esquerda” no Parlamento que só não governa porque não se une, e não se une por causa dos traumas do PREC e da luta de morte entre os que defendiam uma democracia como a nossa e os que lutaram por uma democracia popular como as que existiam no Leste da Europa.

Capa do Programa Eleitoral do PCP nas primeiras eleições legislativas, Abril de 1976

Capa do Programa Eleitoral do PCP nas primeiras eleições legislativas, Abril de 1976

Primeiro que tudo, a ideia da “maioria de esquerda” não é nova, não é de Costa, nem sequer dos debutantes do Livre. Data de 1976, das primeiras eleições para a Assembleia da República. E era o slogan de campanha do PCP. “Por uma maioria de esquerda” lia-se então pelas paredes de todo o país, e lembro-me bem disso porque foram as primeiras eleições em que votei (não tinha ainda idade para votar nas eleições de 1975, para a Constituinte). Foi então o programa do PCP, foi sempre o programa do PCP, continua a ser o programa do PCP, que nunca desistiu da ideia de atrair a si um PS que abandonasse as políticas “de direita”. Jerónimo de Sousa não mudou – quem mudou foi António Costa, e com ele o PS, que está a querer que acreditemos que este é um PCP diferente. Não é, como já veremos.

Depois, o que não tem faltado na Assembleia da República são “maiorias de esquerda”, se bem que apenas aritméticas: de 1976 a 1979; de 1983 a 1985; de 1995 a 2002; e de 2005 a 2011. Em todas essas ocasiões o PS podia ter governado com o PCP, mas nunca o fez. Não o fez mesmo quando governou apenas com uma maioria relativa, sujeita a acordos pontuais para sobreviver.

O que distingue a actual “maioria de esquerda” das anteriores é que, desta vez, o líder do PS precisa do resto da esquerda para impedir que governe quem ganhou as eleições – a coligação. Apenas isso e uma enorme falta de princípios ou de escrúpulos.

Desde o dia em que Mário Soares deixou bem claro, no famoso debate com Cunhal, que havia uma fronteira que separava o socialismo democrático dos marxismos revolucionários, até à defenestração de Seguro, o PS sempre se aproximou de todos quantos, à sua esquerda, foram trocando as diferentes variantes de utopias comunistas pela aceitação da nossa economia social de mercado. Aconteceu com os primeiros dissidentes do MES, com várias revoadas de dissidentes do PCP, até com a esquecida UEDS onde militou António Vitorino. Sempre houve e continua a haver gente a percorrer esse caminho, gente como a que, por exemplo, está hoje no Livre.

Em contrapartida, o que o PS nunca fez foi colocar-se numa posição de dependência de partidos que não são apenas radicais, são revolucionários e têm como programa último destruir o capitalismo. Partidos como aqueles a que agora esmola apoio.

O mito das várias esquerdas

É uma espécie de mantra que serve para todas as ocasiões: tudo seria diferente se as diferentes esquerdas se unissem em vez de se combaterem. Daria para escrever um tratado sobre como a divisão das esquerdas não é fruto do sectarismo dos seus dirigentes, antes o resultado das suas crenças e daquilo a que Karl Popper chamou a “miséria do historicismo”. Mas não vou por aí. Vou apenas recordar evidências que, googlando um pouco, logo saltariam à vista de quem procurasse não ficar pela superfície.

O que separa a tradição socialista e social-democrata dos partidos de inspiração revolucionária não é serem mais ou menos de esquerda, nem é saber se estavam em 1975 na Fonte Luminosa ou nas barricadas que nesse dia cercaram Lisboa, ou ainda como olharam para o golpe de Praga ou para os julgamentos de Moscovo: de tudo isso se pode dizer que são coisas que pertencem à História. A verdadeira separação está hoje, como aliás sempre esteve, na fronteira da liberdade – a fronteira que fez com que, nesses momentos decisivos, estivessem em lados opostos da barricada.

Para o PCP, tal como para os sectores mais ortodoxos do Bloco, é absolutamente indiferente saber se é agora ou daqui por 20 anos que vão reivindicar a saída da NATO ou do euro. Isso é tática e dependerá sempre da melhor oportunidade. O importante são os seus objectivos estratégicos, algo que aprenderam com Lenine. Ora esses objectivos podem estar escondidos sob muitas camadas de verniz democrático, mas estão sempre lá. Não caíram à mesa das conversas com António Costa.

Leiam por exemplo esta frase: “A mesma fibra que temos hoje é a que tínhamos há 40 anos: a fibra dos revolucionários, dos que arriscam, dos que aprendem, dos que nunca esquecem onde têm as suas raízes, as mais profundas, as do pensamento.” Sabem quem a proferiu? Joana Mortágua, a irmã gémea de Mariana Mortágua que milita na metade UDP do Bloco. E sabem quando? Há menos de um ano. Não se iludam: é assim que pensa quem realmente forma a ossatura do Bloco. Os olhos verdes de Catarina são encantadores são apenas isso: encantadores.

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Joana Mortágua, 18 de Dezembro de 2014, falando do futuro do “marxismo revolucionário”

E agora leiam isto: “O PCP tem como base teórica o marxismo‐leninismo: concepção materialista e dialéctica do mundo”. Ou isto: “O PCP tem como objectivos supremos a construção em Portugal do socialismo e do comunismo que permitirão pôr fim à exploração do homem pelo homem […] A acção e a identidade do Partido são inseparáveis destes objectivos e do ideal comunista.” São duas das alíneas dos Estatutos do PCP, que todos os militantes são obrigados a aceitar e praticar. Estatutos que, como temos vista inúmeras vezes, não são letra morta ou uma vestígio esquecido do passado (foram revistos em 2012). Jerónimo de Sousa é sem dúvida um avô simpático que adora os seus netos, mas é a esta disciplina que está obrigado. E que aceita e promove.

Noutros países, comunistas e radicais de esquerda evoluíram para posições mais moderadas e acabaram por se integrar e aceitar o nosso regime democrático e a nossa forma de viver em liberdade. Aconteceu com os eurocomunistas, de que é herdeiro, por exemplo, o actual primeiro-ministro de Itália. Ou com os verdes alemães, muitos dos quais na sua juventude ainda foram mais revolucionários e violentos do que o nosso Francisco Louçã.

Nada disso sucedeu em Portugal, e não serão as cenouras estendidas por António Costa que induzirão uma espécie de moderno milagre das rosas. Por isso, como nenhum destes dois partidos revolucionários se afastou da sua matriz de sempre, o que está a acontecer torna-se bem mais grave: ao colocar num mesmo patamar todas “as esquerdas”, é Costa que esbate as diferenças que permitiram ao PS ser um dos dois grandes partidos da nossa democracia e não apenas uma esquerda que só de distingue da outra porque é um bocadinho menos de esquerda.

Costa diz agora que é como se “estivesse a derrubar o que restava do Muro de Berlim”. Talvez, só que desta vez que restava desse muro cai sobre o PS, não sobre um PCP que continua, tranquilo, a ser o que sempre foi.

O que significa que, a partir de agora, está-se em terra incognita.

O logro do “virar a página da austeridade”

Eu sei: o socialismo e a social-democracia atravessam uma crise profunda em toda a Europa. E também sei porquê: o seu sucesso dependia da sua maior propensão para redistribuir a riqueza crescente que as sociedades desenvolvidas geraram nos últimos 200 anos; a sua crise começou, primeiro, quando “acabou o dinheiro dos outros”, isto é, quando deixou de ser possível cobrar mais e mais impostos, e, depois, quando “acabou o dinheiro dos bancos” e, em vez dele, surgiram as obrigações das dívidas.

Poderia de novo alongar-me sobre estes pontos, mas fico-me pela triste constatação da forma como o PS de Costa entendeu enfrentar essa crise de identidade. E essa foi procurando apresentar-se como o campeão da anti-austeridade. O nosso PS não só nunca reconheceu a sua responsabilidade nas decisões que nos levaram até à bancarrota (pelo contrário: uma das causas de Costa no seu combate contra Seguro foi evitar que isso fosse feito, que o legado de Sócrates fosse posto em causa), como actuou demasiadas vezes no país e no parlamento de forma indistinguível da do Bloco ou do PCP.

É isso que justifica a leitura que Costa, e todos à sua esquerda, fazem dos resultados eleitorais: a de que a grande clivagem em Portugal é entre os partidos anti-austeridade e uns malvados que andaram a empobrecer deliberadamente o país. Esta cassete não é apenas mistificadora e indecorosa no que representa de mentira (a austeridade chegou com os PEC de Sócrates, o memorando que este assinou com a troika previa metas para o défice que teriam exigido ainda mais austeridade do que aquela que houve); esta cassete subverte a divisão entre partidos responsáveis e de governo e partidos irresponsáveis e populistas.

António Costa a 25 de Janeiro de 2015, depois das eleições gregas

António Costa ao Expresso a 25 de Janeiro de 2015, depois das eleições gregas

Nos últimos anos, sobretudo no último ano, pouco ou nada separou o discurso do PS do discurso da esquerda radical: Costa saudou a vitória do Syriza e só se demarcou de Tsipras e Veroufakis quando o desastre era evidente; Costa, e boa parte dos que escolheu para a sua direcção, namoraram a ideia da reestruturação da dívida; Costa não se cansou de atacar o Pacto Orçamental que agora diz querer cumprir; e por aí adiante. Tudo isto afastou o PS da matriz pragmática, com os pés na terra, de um partido de Governo, para o aproximar do discurso populista e extremista dos radicais. Neste quadro o “programa de Centeno” sempre foi, percebemos hoje com muito mais clareza, a cortina de fumo destinada a mascarar uma deriva sem precedentes. Foi um programa em que Costa verdadeiramente nunca acreditou, ao ponto de nem entender muito bem o que lá estava escrito, ou o detalhe das suas famosas contas, como ficou claro nos debates e na campanha eleitoral. Foi um engodo para eleitores moderados e ainda com memória dos desvarios dos anos de Sócrates.

Por isso a dúvida, mais do que legítima: se esse “programa de Centeno”, mesmo sendo moderado, já era arriscado em termos económicos, podendo colocar Portugal fora dos limites do Pacto Orçamental num ápice, o que é que Costa pode agora oferecer, com credibilidade, a comunistas e bloquistas que não faça imediatamente explodir o défice e, como ele, a dívida?

Não nos preocupemos, acabarão por ter juízo. Até Tsipras teve…

Hollande prometeu a Lua e nem sequer entregou uma amostra de Plutão. Porque há-de Costa ser diferente? Se Tsipras se transformou num social-democrata rendido ao realismo, não dramatizemos com este aristocrata da política bem habituado aos corredores do poder.

Eu sei que muitos acham que, no fim do dia, o líder do Partido Socialista fará, sendo primeiro-ministro, o que é necessário fazer – porque não terá alternativa, como os outros não tiveram. Acabará então por ater-se às regras europeias, mesmo que esbracejando. Já vimos o filme várias vezes. Mas com uma diferença: o filme era protagonizado por líderes com uma legitimidade eleitoral que Costa não tem nem nunca terá e suportados por maiorias sólidas, exactamente o contrário do que acontecerá se houver o famoso “governo de esquerda”.

Um governo minoritário de Costa não terá um segundo de “estado de graça”. Os eleitores não deixarão de o ver como um usurpador, e nunca ao longo da nossa longa história o nosso bom povo tratou com respeito ou sequer tolerância os usurpadores. Um governo minoritário de Costa também não poderá contar com qualquer tolerância dos partidos à sua direita, que nunca se esquecerão de que foram eles que ganharam as eleições, depois de terem sido eles que, durante uma legislatura inteira, tiveram de tomar as medidas mais impopulares de toda a nossa história democrática, fazendo-o contra tudo e contra todos e com um sucesso que começa a estar à vista (mesmo de quem insiste em ser cego, surdo e mudo). Por fim, um governo minoritário de Costa estará sempre dependente da boa-vontade dos partidos à sua esquerda, e estes só têm uma coisa a ganhar neste processo: saborearem o gosto de impedirem os vencedores das eleições de 4 de Outubro de governarem, de acordo com o mandato que o povo lhes deu, mesmo que limitado. Saboreado esse petisco, só terão depois a perder quando chegar a altura de o líder do PS fazer as contas que hoje parece desconhecer e descobrir que o dinheiro não se multiplicou como os pães e os peixes dos evangelhos.

Nessa altura, o “homem capaz de fazer pontes” perceberá que só conseguiu irritar todos e ficar sozinho no meio da ponte. Nessa altura o “kingmaker” entenderá como o seu poder – que persegue por motivos estritamente pessoais, para sobreviver no PS – está afinal nas mãos de outros.

De resto, deixem-me fazer uma pergunta singela: já vimos o que a coligação ofereceu ao PS, propondo-se adoptar 23 pontos do seu programa eleitoral; mas alguém já vislumbrou algo que possa estar sequer perto de ser um acordo do PS com o PCP ou com o Bloco? O que vimos – o comunicado do PCP, as exigências do Bloco – fariam estoirar o défice instantaneamente, mostrando até que ponto é conversa fiada a ideia que Costa anda a tentar passar para a imprensa internacional de que estes estão a negociar “um programa de governo comum sem por em causa os compromissos de Portugal como membro activo da zona euro”.

Estamos pois no limbo. O PCP nem sequer disse que aprovaria o primeiro orçamento de Costa. O Bloco só celebrou, de forma bem estridente e inopinada, o fim do governo de Passos. Para já é tudo o que há das “conversações avançadas” com a esquerda.

É por isso que digo e repito: só se deixa enganar quem quer ser enganado. De novo.

E o pior é que Portugal não passa, já não está a passar, incólume por esta traficância. Sofreu-se muito para conter a subida da despesa pública, sofreu-se imenso para começar a adaptar a economia aos mercados abertos e competitivos destes tempo de globalização, penou-se sem fim para trazer os juros para os níveis a que estão, que permitem que Portugal se financie nos mercados, e tudo isso pode ser deitado pela janela fora no altar de um ego sem limites. (Já agora: outra das mentiras mil vezes repetidas pelo PS é que os nossos juros só estão baixos por causa da actuação do Banco Central Europeu, esquecendo que essa actuação também devia beneficiar a Grécia e esta continua a enfrentar juros incomportáveis que a condenam a depender, como sabemos, da ajuda externa. Ou seja, o que faz esta diferença é o que se conseguiu em Portugal e o que não se conseguiu na Grécia).

Temos pois razões sem fim para nos preocuparmos. Por devermos ter consciência que o nosso PCP não deixou de ser o nosso PCP; que para uma Mortágua sorridente e gentil há outra Mortágua a celebrar o marxismo revolucionário; e que se houve alguma radicalização nos partidos de governo, essa radicalização foi de um PS que no passado queria privatizar a TAP e agora quer desprivatizar, que antes aprovou leis onde se admitia o plafonamento das pensões e hoje faz em torno dessa hipótese uma demagogia que até deixaria corado Jerónimo de Sousa.

E sim, preocupem-se muito porque não há nada mais perigoso que um homem desesperado que não tem nada a perder depois de ter perdido tudo. Um homem como António Costa se está a revelar, até para enorme surpresa dos que tinham com ele relações pessoais de amizade.

Se não nos preocupar-nos podemos acordar demasiado tarde, depois de demasiado mal ter sido feito. Já nos aconteceu.