A publicação no semanário “Expresso” de novas informações sobre Portugal nos Arquivos Mitrokhin deveria obrigar-nos a pensar uma vez mais sobre as actividades de algumas forças e personalidades políticas na nossa história recente, mas, no lugar disso, assistimos ao levantamento de uma cortina de silêncio em torno do problema, provocado por razões políticas e não só.

Não há margem para dúvidas que as informações contidas nos apontamentos do antigo arquivista do KGB soviético, Vassili Mitrokhin, são verdadeiras. Como seria possível que uma pessoa, por muito genial que fosse, conseguisse dados sobre Portugal que coincidissem tão bem com a realidade? Porque é que Mitrokhin se interessaria por Portugal se realmente nada tivesse acontecido de substancial?

A reacção a este tema do Partido Comunista Português, a força política mais visada nessas notas, se ainda surpreende, é pelo facto de responder não com argumentos, mas com insultos cada vez mais desesperados: “O papel aguenta tudo e portanto o limite para este infame ultraje ao PCP, força patriótica, coloca-se apenas à imaginação dos difamantes e dos caluniadores. Sem se sentir obrigado a ter em conta as reiteradas afirmações que sobre isso o PCP e os seus principais dirigentes fizeram, o Expresso procura enlamear o nome do Partido, bastando-lhe assentar toda esta aldrabice numas memórias de um qualquer vendido, ainda por cima falecido, afrontando a verdade e passando por cima dos desmentidos de todos aqueles que o pasquim decidiu contactar”, escreve João Frazão no Avante e remata num estilo bem estalinista: “Como lixo que são, o lugar destas peças é no Arquivo Cesto”.

Não tenhamos pressa em seguir este conselho de um militante de força tão “patriótica”, pois, se cruzarmos estas notas com outros documentos já antes publicados, nomeadamente no meu livro “Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril” ou em artigos que escrevi para o “Público” logo após o fim da URSS, veremos que as coincidências são muitas.

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Mas antes disso, é preciso deixar aqui uma pequena explicação. Vassili Mitrokhin trabalhou com os arquivos do KGB, enquanto eu tive acesso aos arquivos do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), ou seja, coincidem dados extraídos de documentos arquivos de dois importantes pilares do comunismo na URSS.

Vejamos, uma das personalidades mais relevantes que surgem na “parte portuguesa” do Arquivo Mitrokhin” é Octávio Pato, conhecido dirigente comunista que tratava da angariação de fontes junto do Kremlin e dos contactos com o KGB soviético. No meu livro, publico na pág. 205 um documento retirado da Pasta Especial do CC do PCUS, onde se guardavam os materiais mais secretos, que diz o seguinte: “A direcção do Partido Comunista Português (camarada O. Pato) dirigiu um pedido de aquisição para o PCP de tecnologia especial de fabrico estrangeiro para garantir a segurança do partido…”.

Este documento data de 25 de Abril de 1980 e tem continuidade numa decisão do Secretariado do CC do PCUS: “Satisfazer o pedido da direcção do Partido Comunista Português e encarregar o KGB da URSS de adquirir e fornecer tecnologia especial ao PCP”.

Após o derrube da ditadura comunista na URSS, foram encontrados e publicados recibos assinados por Octávio Pato quando recebia milhares de dólares de “internacionalismo proletário”.

No jornal Expresso de 2 de Abril, é publicado o nome e a alcunha de um médico e deputado socialista que trabalhou para o KGB: António (Medik), “que ofereceu os seus préstimos enquanto conferencista para defender os métodos da ex-URSS face aos dissidentes”. Estes dados coincidem totalmente com os documentos publicados no meu livro sobre António Fernandes da Fonseca, deputado socialista e conhecido especialista no campo da Psiquiatria.

Durante a visita de uma delegação parlamentar portuguesa à URSS, em Novembro de 1976, esse médico ofereceu os seus préstimos a Moscovo para combater a campanha internacional contra o emprego da Psiquiatria na perseguição aos dissidentes. Num dos documentos por mim revelados na página 196 do mesmo livro, lê-se que “A. Fernandes da Fonseca pediu para que lhe fossem enviados os respectivos dados para preparar a sua intervenção no congresso [Congresso Mundial de Psiquiatras em Honolulu]… e para fazer chegá-los a psiquiatras de outros países e povos que falam português”.

Por estes dois exemplos, mas pode-se encontrar outros como o desvio de passaportes portugueses, como o treino de militantes do PCP pelo KGB, etc., constata-se que os dados contidos nos Arquivos de Mitrokhin são fidedignos. Claro que não se pode acusar de “agentes soviéticos” todas as pessoas que falavam com homens do KGB e recebiam “alcunhas” destes últimos, porque, frequentemente, isso era uma forma de mostrar que tinham uma grande capacidade de “recrutar”.

Quanto ao desvio de parte dos arquivos da PIDE e de outros serviços, nomeadamente de inteligência militar, só podem duvidar aqueles que não querem ver a realidade. Falei com vários investigadores que consultaram os arquivos da PIDE na Torre do Tombo e surpreende-lhes o facto de neles não existir nada ou quase nada sobre alguns grandes empresários portugueses ou sobre organizações que, pela sua importância, deveriam estar lá. Por exemplo: será que a PIDE não tinha pastas sobre as “actividades subversivas” dos Missionários Combonianos em Moçambique, alguns membros dos quais foram perseguidos pela polícia política? Na Torre do Tombo não está nada.

A argumentação de que o Arquivo da PIDE podia não interessar aos soviéticos porque se tratava de uma polícia com poucos contactos internacionais é simplesmente ridícula e não só porque no seu nome tem a palavra “internacional”, mas porque Portugal tinha um enorme império colonial. A documentação da inteligência militar podia ser um caminho directo para os segredos da NATO.

Os argumentos e provas apresentados no Expresso e no meu livro são mais do que suficientes para que as autoridades portuguesas se interessassem mais a sério pelo caso, mas, no lugar disso, o tema é envolto numa cortina de silêncio.

Alguns dos analistas políticos nacionais acusam o Expresso de se debruçar sobre este tema agora para tentar enfraquecer o actual governo através da crítica a um dos seus pilares: o PCP. Eu fico com a impressão contrária: o actual governo não quer irritar um dos seus aliados. Caso contrário, poderia começar averiguações no sentido de apurar responsabilidades. Pelo menos em nome da verdade histórica.

O mesmo se deveria esperar da Procuradoria-Geral da República, mas, segundo noticia o Expresso, não foi possível obter resposta desse órgão às perguntas do jornal.

Quem tem medo da história?