1. Conflito de interesses
Não tenho grandes dúvidas de que um dos motivos do crescimento anémico que tem caracterizado a economia portuguesa desde o ano 2000 é a falta de concorrência em sectores‑chave. Empresas com pouca concorrência não têm grandes incentivos a inovar e podem impor preços elevados aos seus clientes. Se essa empresa actuar num sector‑chave, como o da energia, por exemplo, vai impor custos a toda a economia, reduzindo generalizadamente a sua competitividade externa.
Uma forma de obrigar empresas monopolistas a comportarem-se de forma concorrencial, não prejudicando os restantes sectores, é através de uma forte acção dos reguladores de mercado, como a ANACOM, a ERSE, a Autoridade da Concorrência, etc. Já muito se escreveu, e eu também o fiz, sobre captura de interesses, portas giratórias entre reguladores e regulados e outros problemas que impedem que, com poucas excepções, haja uma regulação efectiva e eficaz em Portugal.
Penso que um dos motivos pelo qual é difícil discutir isto em Portugal é a nossa tendência para encarar tudo em termos pessoais. Por exemplo, quando alguém critica o nosso trabalho, temos tendência para reagir como se nos estivessem a criticar, ou até a insultar, pessoalmente. O que é uma tontice.
O mesmo se passa com os conflitos de interesses. Mesmo pessoas inteligentes e informadas confundem a acusação de existência de conflito de interesses com acusações de falta de idoneidade ou de processos de intenção. Ainda há duas semanas, num debate na Rádio Renascença com Silva Peneda e Nuno Botelho, tive ocasião de presenciar esse tipo de confusão. Na altura, critiquei as nomeações do Governo para o Conselho de Administração da ANACOM por evidente conflito de interesses. Silva Peneda retorquiu-me dizendo que eu estava já a levantar suspeições e que ele preferia dar um voto de confiança e esperar para ver. Depois, consoante as decisões em concreto, é que poderia ter uma opinião mais crítica.
Considero que este tipo de argumentação está errado por dois motivos. Em primeiro lugar, a ideia de que se pode a posteriori avaliar as decisões de um regulador é utópica. Os assuntos são demasiado complexos (exigindo conhecimentos profundos de legislação nacional e europeia, bem como de economia e de mercados) para alguém poder ter a pretensão de achar que consegue perceber se há enviesamentos ou não.
Em segundo, e este é o aspecto para que quero chamar a atenção, falar em conflito de interesses não envolve qualquer tipo de acusação de falta de idoneidade. Por exemplo, se eu fosse professor da minha filha, haveria um conflito de interesses óbvio, o que não quer dizer que eu não conseguisse ser imparcial.
Este é um assunto que já há algumas décadas preocupa organizações internacionais, como a OCDE, que, no ponto 10 do seu Guia para a Gestão de Conflitos de Interesse no Serviço Público, usa esta definição:
«Um “conflito de interesses” envolve um conflito entre o dever público e os interesses privados de um determinado oficial público, no qual os seus interesses privados podem influenciar indevidamente a sua actuação.»
A palavra-chave, como me parece óbvio, é «podem». O conflito existe quer a pessoa actue indevidamente ou não. E, como o mesmo documento explica, quando, de facto, os interesses privados comprometem o interesse público, então já se está a falar numa situação de conduta indevida, abuso de poder ou até de corrupção.
A área da regulação é uma das poucas onde se aplica a máxima de que “não basta ser-se sério, é preciso parecê-lo”. Isto porque um regulador para ser respeitado tem de ser e parecer independente. Para mais, tratando de assuntos tão complexos, é muito provável que cometa erros e tome decisões que são injustas para alguns dos regulados. E, quando tal acontece, não pode ficar no ar a suspeição de que houve favorecimento.
As nomeações recentes para a ANACOM mostram que o Governo ainda não percebeu a importância decisiva da regulação para haver um crescimento económico sustentável. Os conflitos de interesses eram mais do que óbvios. E, volto a insistir, isto nada tem que ver com qualquer suspeita em relação às pessoas em concreto (que nem sequer conheço). O que me parece evidente é que, se estas pessoas fossem nomeadas, uma decisão futura que beneficiasse a PT/Altice estaria manchada pela suspeição de favorecimento de interesses. E, já agora, uma decisão que prejudicasse a PT/Altice levantaria também ressentimentos, com acusações de que, ao quererem mostrar imparcialidade, acabavam por prejudicar a empresa em que estiveram envolvidos anteriormente. Tal como o professor que dá piores notas ao seu filho só para mostrar que não o favorece.
2. Com jeitinho, marchavam as duas
Comecei o meu último artigo a falar do famoso acórdão da “coutada do macho ibérico” exarado por uns juízes do Supremo Tribunal de Justiça. Rapidamente, recebi alguns avisos sobre dois erros que teria cometido na referência que fiz. O primeiro erro era porque eu tinha escrito que os réus tinham sido absolvidos. O segundo era mesmo o de que a história da coutada do macho ibérico não passava de um mito urbano.
Relativamente ao primeiro erro, tinham os leitores total razão. Agradeci a correcção e, logo que foi possível, pedi que alterassem o artigo nesse ponto. Relativamente ao segundo erro, não tinham. Mas, ao fazer umas pesquisas com o Google, foi fácil de perceber de onde veio o seu erro. O Supremo Tribunal de Justiça tem online o sumário do acórdão, mas não o acórdão na sua íntegra. Naturalmente, na versão resumida acessível a todos, tiveram o cuidado de omitir a referência à coutada.
Mas o que me levou a regressar a este assunto é que deu para perceber que, sempre que alguém escreve sobre o ele, logo aparece um comentador a dizer que a história da coutada é um mito urbano, deixando o link para o sumário, confundindo-o com a versão integral do acórdão. Ainda por cima, por mais que eu procurasse (e de certeza que por aselhice minha), não encontrava online o raio do tão famoso acórdão.
Felizmente, alguns dos artigos, especialmente em blogues, que referiam o acórdão tinham todas as referências necessárias para eu poder ir procurá-lo na biblioteca da minha universidade. O acórdão está no Boletim do Ministério de Justiça, nº 360, de 1989, página 160 e seguintes. E, como presente a quem me lê, digitalizei-o e resolvi disponibilizá-lo neste link. Assim, sempre que alguém lhes disser que se trata de um mito urbano, podem rebater e dizer que mito urbano é a alegação de que se trata de um mito urbano.
Vale mesmo a pena ler o acórdão completo, de tão surreal que é. Já perto do fim, depois de explicarem com detalhe que as meninas jugoslavas estavam mesmo a pedi-las, lá se sentem na obrigação de dizer que isso «não quer dizer que a actuação do Jorge Manuel não seja censurável», para concluir que ele, com jeitinho, até teria conseguido comer as duas, «à força, como o fez, é que não.»
Estranhamente, esta frase também não vem no resumo disponível no site do Supremo Tribunal de Justiça.
Post Scriptum. Há um leitor e uma leitora que se queixaram de que eu, estando o país, literalmente, a arder, não escreva sobre os incêndios. Lamento muito mas não dá. Eu de combate a incêndios e gestão de florestas não percebo nada. Se calhar estas duas pessoas pensam que a ignorância não me impediu de escrever sobre outros assuntos. E terão razão. Mas sobre florestas e de como tornar a sua gestão economicamente recompensadora não consigo mesmo disfarçar.