No dia 16 de Outubro de 2014, num vulgar acidente de trânsito urbano, Daniel Serrão sofreu um traumatismo crânio-encefálico de que não recuperou senão lenta e incompletamente. A 8 de Janeiro de 2017 uma infecção respiratória veio pôr fim ao percurso vital desta grande figura da medicina e da cultura que, pela sua continuada e intensa intervenção cívica, ganhou foros de preceptor nacional. Em que sentido e em que medida, é o que tentamos sucintamente demonstrar.

A vida

Daniel dos Santos Pinto Serrão nasceu em Vila Real a 1 de Março de 1928. Filho de engenheiro funcionário público, acompanhou a família itinerante por Viana do Castelo, Coimbra, Aveiro (onde concluiu o curso liceal) e, finalmente, Porto, onde se licenciou em Medicina em 1951. Na Faculdade portuense se doutorou (com 19 valores) em 1959, ascendendo a professor extraordinário em 1961 e a catedrático em 1971, sempre por concurso com provas públicas e por unanimidade.

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A sua carreira académica representa a voluntária e radical adopção do modelo que ele próprio definiu como o de professor universitário: “um investigador que ensina”. Assim foi, na área da Anatomia Patológica, interpretada de modo inovador como uma pato-morfologia. Assim se compreende como ensino, investigação, formação de colaboradores, confronto do diagnóstico clínico com o anátomo-patológico se entreteceram naturalmente na actividade universitária a que se dedicou em tempo inteiro, no Porto e em Luanda. Pode por isso escrever, no curriculum para concurso para professor catedrático “que me preparei, e desde longa data, para o exercício desta função, nos diferentes aspectos que ela comporta; pedagógico, científico, cultural, de direcção de pessoas, de orientação de investigação, de contacto internacional”.

Director do Serviço de Anatomia Patológica (nas suas vertentes académica e hospitalar), já autor de duas centenas de publicações, especialista internacionalmente respeitado em patologia hepática, regeneração do fígado, biopsia renal, oncologia, vê-se subitamente demitido de todas as funções em Junho de 1975, pela mais iníqua decisão daqueles que geriam então o Ministério da Educação e na sua sanha persecutória não hesitaram em fundamentar o seu acto com infamante calúnia de colaboração com a polícia política do anterior regime. A esta inqualificável e arbitrária expulsão chamaram “saneamento”, como se desse saúde ao visado ou à instituição que dele se viu privada.

É certo que, um ano depois, foi esta decisão anulada pelo Conselho de Revolução, mas no entretanto teve o Professor Serrão de criar um laboratório privado de exames histopatológicos e citológicos para prover às necessidades materiais da sua numerosa família. De 1975 a 2002, um milhão e seiscentos mil exames atestam do êxito desta iniciativa, a que se viu forçado pelo “saneamento” de que foi alvo. A sua reintegração, em 1976, não lhe suavizou a dor de se considerar ainda demitido, por não poder voltar a exercer a sua missão de professor na estrita exclusividade que fora a sua opção de vida.

De todo este processo e da intervenção de alguns figurantes desta farsa antidemocrática dá conta precisa e factual o livro que apenas em 2008 publicou e que intitulou “Um saneamento exemplar”. Mesmo assim, e como era de esperar, elevou o seu Laboratório aos mais altos níveis de respeitabilidade científica e de qualidade profissional, orientando e ajudando a formar-se uma notável plêiade de professores e investigadores na área da Anatomia Patológica, para além dos numerosos cultores de outras disciplinas, que no seu laboratório e sob a sua inspiração e orientação realizaram investigações que conduziram à obtenção de graus académicos e à aprovação em concursos professorais.

Universitário autêntico, procurador da verdade, Daniel Serrão não podia ficar indiferente ao debate de ideias acerca da natureza e função da instituição universitária, pronunciando-se em palestras e artigos de luminosa clareza e sólido andaime argumentativo. Ainda como universitário, mas cultor do ramo porventura mais próximo da ânsia e sofrimento humanos, a Medicina, Serrão ocupou-se longa e proficuamente da política de saúde, ou da sua ausência. O Sistema Nacional de Saúde foi dissecado com particular rigor e finura, culminando a sua intervenção nesta área com o Relatório do Conselho de Reflexão sobre a Saúde, elaborado ao fim de ano e meio de audições e consultas, documento tão notável quão aparentemente esquecido por quem tinha obrigação séria de o analisar em profundidade; note-se que Manuel Delgado, actualmente com funções governativas, é um dos seus subscritores.

Saúde e doença, padecer e morrer são dados e conceitos a que Serrão não podia ficar indiferente, ele que contemplou tantas centenas de milhares de lâminas histológicas em que a beleza formal de células cancerosas escondia um sinal ominosos ou até letal. São vários os seus trabalhos, as suas reflexões sobre este tema, caldeados numa compaixão autêntica, não sentimentalizada, alimentada pela sensibilidades humaníssima de um filósofo personalista e expressa num estilo simultaneamente elegante e forte, poético e por isso verdadeiro. De resto, as suas devoções literárias levaram-no a escrever finos ensaios sobre Fernando Pessoa, Agustina Bessa Luís, António Gedeão, Pina Martins…

Cargos, funções, participações em comissões, regências, conselhos de Fundações, Senado universitário, presença em Academias, são uma constante do seu curriculum e traduzem o seu empenho e contribuição como cidadão universitário, consciente da sua responsabilidade de esforçada e esperançosamente colaborar na tarefa de justiça e solidariedade que a sua mundividência torna parte essencial do mundo a construir. Neste aspecto, reveste-se de particular relevo a sua intervenção na Academia para a Vida, fundada por João Paulo II e de que foi o único membro fundador português.

Na última e tão fecunda quinzena de anos, o jubilado Serrão dedicou-se de forma intensa, quase diríamos apaixonada, à Bioética, a partir talvez das suas originais abordagens da filosofia da dor, do envelhecimento, da emergência da fala e das origens da inteligência. Ele é, de facto, um dos introdutores da Bioética em Portugal e, seguramente, o mais polifacetado difusor e agente da sua definição como realidade utópica e resposta às necessidades das pessoas de hoje. Demasiado numerosas para serem aqui elencadas, as suas intervenções, pela palavra e pela escrita, têm suscitado interesse, discussão, admiração; servem de orientação e estímulo para os felizmente hoje já numerosos estudantes e docentes desta área inovadora do pensamento e do agir humanos. Professor de Ética e Deontologia Médica, bem como de todos os cursos de pós-graduação, de Mestrado e de Doutoramento em Bioética levados a cabo no país, e que já atingem a dezena; coautor de livros sobre Bioética; conferencista em Portugal, no Brasil, em Espanha, na França, na Suécia; conselheiro do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, membro desde 1991 até 2009 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, pode dizer-se, com justiça, que o panorama da Bioética em Portugal seria paupérrimo e rudimentar sem a sua determinante e disponível presença.

Uma pessoa assim, de tão multifacetados talentos, que não conduzem a dispersões esbanjadoras mas antes harmoniosamente se fundem na “importância misteriosa de existir”, é cidadão de Portugal e do mundo. Sociedades europeias ou mundiais, na ciência, na cultura, na bioética, acolheram-no e elegeram-no para funções de conselho e de direcção. A sua contribuição para o labor do Comité Director de Bioética do Conselho da Europa, do Comité Internacional de Bioética da UNESCO, da Unidade de Bioética da Fundação Europeia da Ciência e da Associação Internacional de Bioética (deque é membro fundador) traduzem de forma clara (tal como a sua presença nos conselhos editoriais de duas das mais prestigiadas revistas internacionais de Bioética) o respeito e a consideração em que é tido o seu nome.

A obra

É vastíssima a obra de Daniel Serrão, só incompleta e fragmentariamente vertida nos seus livros. O seu biógrafo Carlos Costa Gomes procedeu ao levantamento dos trabalhos publicados e inéditos, elencando mais de mil, desde os de índole científica até aos de natureza doutrinal, sem esquecer as numerosas entrevistas, os artigos de opinião, os depoimentos prestados a meios de comunicação e as suas tão marcantes intervenções na rádio e na televisão. Comunicador de eleição, dono de um estilo elegante e racional, fundamentado cientificamente e de meridiana clareza, a sua presença tornou-se habitual, mesmo em programas de grande audiência e popularidade. Nestes meios, como nos seus escritos, propagou sempre a sua mensagem humanista, respeitadora da vida, da liberdade e da integridade da pessoa humana, desde a sua concepção até à sua morte natural.

A mesma mensagem, naturalmente mais cuidada e elaborada, encontramos nos seus ensaios, paradigmas do pensamento crítico como fundamento da elaboração doutrinal.

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De facto, Daniel Serrão contempla, do alto (será que se justifica esta usual topografia) de seis décadas de actividade docente e investigacional, muitas questões e desafios que à mente humana e particularmente à que sente, pensando (para aludir aqui à tão genial expressão fusional de Álvaro de Campos, que tão finamente analisa) os tempos que vivemos vêm propondo. Não se exime a tentar divisar os desafios deste século ainda infante ou a definir o que é, na sua essência, a saúde; com a mesma detida acuidade analisa a auto-estima e o corpo, os mistérios da dor, o ocaso do envelhecimento, arriscando-se até a reflectir sobre a mulher, a maternidade e a vida. Em temas aparentemente tão díspares, Daniel Serrão oferece, para além da demonstração das altíssimas qualidades intelectuais que gratamente todos lhe reconhecemos, uma visão consistente, fundamente ética, do mundo e do devir do Homem.

Esta mundividência, árdua e progressivamente construída ao longo do seu percurso vital, com o recurso a múltiplas e duras leituras e a uma devoradora vontade de perscrutar, encontra-se particularmente exposta na sua obra “Procurar a sabedoria/partilhar o conhecimento”. É que Daniel Serrão é médico e filósofo, designação que bem lhe assenta, se aceitarmos a definição de H. D. Thoreau: “Ser filósofo não é apenas ter pensamentos subtis, nem sequer fundar uma escola, mas apenas amar a sabedoria e viver de acordo com os seus ditames…”.

O próprio autor reconhece que existem “problemas que têm sido centrais na minha reflexão” a propósito do por si muito estudado pensador norte-americano David Abraham. O leitor comum (como eu) identificará alguns (o conhecimento e a sua aquisição, a paleobiologia, a relação problemática corpo-espírito, a emergência da fala, a inteligência reflexiva, a neuroética, a autoconsciência; mas outros só serão acessíveis às mentes que se lhe equiparem e com ele possam conviver. Que prazer irmo-nos alimentando das migalhas que caem desta mesa, entendendo o que Foucault (que não é um dos favoritos de Serrão) afirmou, quando se referia às “estruturas fundamentais da experiência” que estabelecem ligações entre o momento médico, o filósofo e a literatura (melhor: o médico, o filósofo, o literato.

Serrão é um homem de cultura e a cultura começa pela escuta e pela discussão do que nos legaram aqueles que obedeceram ao grande dever de pensar. A sua intimidade com os filósofos (Aristóteles, Kant, Descartes, Merleau Ponty, Heidegger sobretudo) não o impediu de se interessar por outros campos: Merlin Donald, o já citado Abraham, Damásio, Popper e, claro está, os profetas (van Rensselaer Potter, André Helleghers) e os cultores da Bioética. De tudo isto Daniel retira a sua própria e pessoalíssima conclusão e partilha-a com os outros, em atitude de generosa oferta que é simultaneamente a de quem se auto-retrata.

Não será descabido convocar aqui Ricardo Reis, tão finamente analisado por Serrão, já que o conselho exigente do poeta nele inteiramente se realizou:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê tudo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Conclusão

Porque alto viveu, continua vivo. São muitos os estudantes dos seus textos, os que continuam a ouvir as gravações das suas intervenções, os que obtiveram graus académicos sob a sua orientação e continuam a pesquisar, seguindo as sendas que com ele foram desbravando. Nos últimos tempos, dedicou particular entusiasmo aos mecanismos cerebrais humanos, à filosofia e neurofisiologia da auto-consciência, no âmbito da novel área, em que mais uma vez foi precursor, da neuroética. O curso de pós-graduação que com António Jácomo criou, intitulado provocatoriamente de “Mente às sextas”, continua a suscitar o interesse de mais de uma centena de licenciados, agora a cargo do Prof. Jácomo. A sua contribuição não é datada, nem obsolescente: os problemas a que dedicou a sua imensa capacidade tomam por vezes aspectos (ou apenas máscaras) diversos, mas as grandes questões que lhes subjazem não mudam de conteúdo nem de premência.

No seu conjunto, a multímoda obra de Daniel Serrão forma uma clara exposição, escorreita e una, de uma doutrina, de um exigente modo de julgar e sentir o mundo, numa fidelidade a princípios e a uma visão original, madura, solidamente fundamentada no raciocínio e conhecimento científico e amplamente iluminada pela transcendência. Ele, que singelamente confessava ser “ainda dos que acreditam no Menino Jesus”, não deixou de experimentar os seus combates de Jacob e do Anjo, de que saiu mais forte e confiante. Mas soube sempre intervir e argumentar, falando a linguagem universal da razão esclarecida e responsável, respeitosa e tolerante, a linguagem de quem quer ajudar o outro a ser mais feliz e mais justo, mais capaz de respeitar, amar e celebrar a vida.

Professor Catedrático (aposentado) da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Consultor do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa