Quando demagogias de sinal contrário colidem, é a verdade que sofre. E no imenso drama dos refugiados – ou dos migrantes, a semântica não é neste caso indiferente –, a verdade sofre tratos de polé e empalidece perante a violência dos contrários, expressa em vitupério e, quantas vezes, pura maldade. Ou simples disparate.
Não seria possível – não será preferível – discutir o assunto com elevação, inteligência e bom senso? Seria. Mas não é. Será. Mas pode não ser possível. E no drama que, de tão trágico, assume alturas de comédia, a maior das falências é a do bom senso. São 2 os discursos, 2 as narrativas, 2 os argumentos:
De um lado, invoca-se a obrigação da Europa receber, sem condições nem limites, todo e qualquer cidadão – vindo da Síria, da Líbia, da Etiópia, seja de onde for -, em razão de uma moral retributiva que aponta para as responsabilidades europeias na actual situação dos países de origem dos que buscam o continente; um argumento que, numa perspectiva legal, invoca o sagrando princípio da protecção dos refugiados.
Do outro, invoca-se o direito de defesa, a necessidade de suster o verdadeiro dique humano que, vindo de todos os lados (de sul, oeste, até do Norte ártico, entre a Rússia e a Noruega), invade a terra do bem estar e da liberdade; evoca-se o livro de 1973 de Jean Raspail, “O Campo dos Santos”, já por mim anteriormente referido, premonitório da grande invasão da Europa pelos povos do sul em fuga; recorda-se a ameaça ao modo de vida europeu, num continente que, com todas as suas diferenças e fragilidades, é ainda aquele onde provavelmente melhor se vive, um imã para os deserdados da sorte do mundo inteiro.
Entre os defensores de cada uma das teses é cada vez maior a acrimónia. Entre eles não há já diálogo possível. A uns chamam os outros insensíveis, defensores da fortaleza-europa, reaccionários; dos outros dizem uns ser utópicos, iludidos, comunistas. E, a cavalo na crise, chegam os habituais flagelos: a xenofobia, o racismo, a intolerância. A demagogia.
E se a pergunta é: quem tem razão?, a resposta deve ser: nenhum deles. Nem faz sentido considerar que as portas da Europa devem estar abertas para quem quer que a procure – pelas mais variadas razões, da fuga à morte à busca de um emprego -, nem tão pouco colocar arame farpado em redor dos ricos países europeus; ricos, sim, todos eles (pobres são os refugiados que chegam em esquifes flutuantes, quando chegam, calcorreiam milhares de quilómetros a pé, deixam vidas pelo caminho, sufocam em apinhados camiões de gado). Mas escancarar sem limites o doce ventre do continente europeu é um erro tão grande como fechar a 7 chaves as portas do castelo – pois os chegantes entrarão pelas janelas, virão em voo planado, construirão muros maiores do que os maiores muros, pela força da raiva do puro desespero.
A crise dos refugiados na Europa já só é comparável à da segunda guerra. Angela Merkel diz ser o grande problema com que a Europa está confrontada, à frente da crise do euro ou da ameaça russa. A crise dos refugiados é económica, é demográfica, é humana, é a crise da promessa europeia de um continente inclusivo, de uma cidadania alargada, de construção de uma verdadeira humanidade. Segurança, liberdade, bem-estar, responsabilidade. E embora o drama esteja longe de ser exclusivamente europeu – há quase 60 milhões de refugiados e pessoas deslocadas internamente espalhados pelo Mundo -, a pressão maior, no imediato, é sobre o velho continente. Aqui chega a esmagadora maioria dos que buscam refúgio, mais de 50% do total vindos de 3 países próximos: a Somália, o Afeganistão e a Síria.
Como agir? A resposta é simples mas de concretização difícil. Os países europeus devem agir em conjunto, dando uma oportunidade à única solução realista: a conclusão de um sistema europeu comum para todos os refugiados (incluindo a partilha do esforço de acolhimento). Uma vez mais, a solução não pode ser exclusivamente nacional, mas a vontade de a concretizar tem de ser dos governos nacionais. Desde 1999 que a União Europeia tenta criar um Sistema Europeu Comum de Asilo. Existem várias normas nesse sentido, como as contidas nas directivas “procedimento de asilo”, “condições de acolhimento”, “estatuto de refugiado” e no regulamento de Dublin, que protegem nomeadamente os requerentes de asilo entre o momento em que chegam e a eventual atribuição do estatuto de asilados. Essas normas visam reger as relações nem sempre fáceis entre os Estados-Membros na matéria. Ainda não é suficiente, o caminho é longo: talvez a crise ajude a percorrê-lo com maior rapidez.
Refugiado, diz a Convenção de Genebra de 1951 (e confirma a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais), é a pessoa que “receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira, pedir a protecção daquele país(…)”. Ou seja, o seu próprio país não lhe garante segurança e direitos básicos. Os refugiados assim designados não podem ser repatriados e forçados a regressar ao país de origem – onde correm perigo. E é essa também a razão por que, desde logo, os refugiados que chegam à Europa devem aqui ser socorridos e acolhidos.
Permitam-me que insista neste ponto: ao contrário do que dizem muitos dos que condenam apressadamente a União Europeia e os seus Estados-membros por suposta permissividade, é o direito internacional, já para não falar dos valores humanitários e da simples decência, que obrigam os países europeus a acolher os refugiados. Coisa distinta – muito distinta – é a imigração por razões económicas, sem respeito pelas leis dos países e da União: sem cumprirem os requisitos legais, os nacionais de países fora do território da União não devem, em princípio, aceder ao respectivo território. E a razão por que existe a obrigação de prestar assistência a um refugiado e não existe a mesma obrigação para com um migrante económico é simples: é que este goza da proteção do país de que é nacional. Refugiados sim, imigrantes não, fora de um quadro regulado e estudado, em termos de legalidade, capacidade de absorção e distribuição equitativa pelo território. Isto, pelo menos, enquanto durar a xenofobia e a exploração demagógica do temor relativamente aos “estrangeiros” por parte de políticos oportunistas das extremas partidárias.
Não chega já? 3.400 afogados nas águas frias do Mediterrâneo; 71 asfixiados num camião frigorífico; milhões de refugiados todos os anos; milhares de traficantes da miséria humana por milhões de euros; e uma Europa em crise demográfica, com taxas de natalidade muito baixas, ansiosa por sangue novo – sobretudo de gente trabalhadora e que tudo fará para assegurar o seu futuro no continente do leite e do mel. Não será esta a grande oportunidade para a própria Europa construir o seu futuro, como Merkel já percebeu e bem assinalou Jorge Almeida Fernandes numa crónica recente? Não poderá esta crise ser o fim do princípio da decadência europeia anunciada pelas recentes crises económica e das dívidas soberanas?
Sim, pode ser tudo isso. Mas a solução tem de ser europeia e não nacional, baseada em solidariedades de facto, completado o Sistema Europeu de Asilo. O inimigo chama-se demagogia, a da retórica fácil e inflamada: chama-se maniqueísmo, o dos que insultam quem pensa diferente; chama-se nacionalismo extremado, o combustível de todos os males.
De fora do continente, não virão respostas. A solução, uma vez mais, é europeia; ou não será.