Ainda muito recentemente, saiu um artigo no “The Economist” a questionar, com humor britânico, o papel dos liberais no panorama político atual do Reino Unido: What is the point of the Lib Dems?

No essencial, os autores não entendem a falta de ambição do Partido Liberal Democrata e brincam com a postura “bonacheirona” do seu líder descontraído que aparece de bicicleta perante os seus acólitos onde “há muita roupa de chuva e uma boa mostra de barbas; a maioria parece ser de professores de matemática reformados; todos parecem ser do tipo de pessoas que se preocupam em lavar os potes de iogurte antes de os reciclar”.

Esta atitude moderada e compassiva encaixa bem no estilo de pessoas que se envolveram nos movimentos liberais ao longo da história. Na realidade, os liberais mais genuinamente liberais, acabam por revelar um perfil psicológico que traduz muito bem o que é o liberalismo e a sua evolução ao longo de séculos cheios de conquistas em prol da liberdade, dos direitos humanos, do progresso social e também económico.

Em primeiro lugar, são tendencialmente pessoas que precisam de se expressar no espaço político e atuar sem medo ou favor. Não foi por acaso que estiveram originalmente na defesa dos direitos individuais, entre as quais o direito à propriedade privada, como algo de natural e inalienável, preservando as liberdades humanas nos séculos XIX e XX, particularmente na configuração do estado de direito, assegurando não só as liberdades, como as limitações para as pessoas e para os governos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Num segundo momento, e talvez seja aqui onde o liberalismo é mais conhecido, conceberam aquilo que é conhecido como o mercado livre onde as pessoas podem estabelecer relações comerciais, empreender e exercer um novo direito que é procurarem ativamente melhorar a sua vida material.

Os historiadores que se interessaram pelo liberalismo descrevem de forma muito prática esta transformação que elevou os mercados na arena ideológica liberal: antes era “Keep off my grass” passou a ser “Let’s explore new fields”.

Entretanto, para controlar pessoas competitivas, talvez potencialmente agressivas e insaciáveis, os próprios liberais reconheceram que o estado teria que regular e proteger este relacionamento económico.

Seguiram-se mais três níveis de desenvolvimento ideológico aparentemente contraditórios em relação a estes dois primeiros momentos fundacionais do liberalismo. Foi John Stuart Mill que defendeu que para alguém livremente se exprimir e competir, deveria ter necessariamente acesso ao conhecimento e à educação. Para ele, cada pessoa deveria ser olhada pelo seu potencial e pelo seu direito a desenvolver-se.

A acompanhar esta vaga progressista surgiram nos meios liberais preocupações em relação à iniquidades sociais na disputa pelos recursos, causadas por circunstâncias externas ao indivíduo, como por exemplo o seu nascimento em famílias de estratos socioeconómicos baixos, catástrofes, guerras, doenças ou desemprego. O corolário deste passo foram as reformas sociais do governo liberal britânico que, por volta de 1911, instituiu o primeiro esboço do que mais tarde veio a ser o “Welfare State”.

Por fim, e para completar o sinuoso caminho que o liberalismo percorreu, adicionando novas preocupações e respondendo, muitas vezes de forma contraditória, aos desafios humanos e das sociedades, os liberais do século XX aperceberam-se da dispersão de poder e da conflitualidade social entre diferentes grupos não como algo negativo, mas sim como algo bem-vindo.

Surgiu, então, para completar a versão do liberalismo social iniciado com o estado protetor, a versão tolerante, inclusiva e de justiça face às diferenças étnicas, de género, de classe, de religião, etc. Max Weber contribuiu para reforçar a vertente legal e constitucional da separação de poderes. Outros, dentro e fora da Europa, fizeram com que o pluralismo e o respeito pelas minorias fossem vistos como resultado de uma sociedade com múltiplas identidades culturais, psicológicas e sociais.

Estamos no Liberalismo dos nossos tempos e a melhor forma de o caracterizar é identificar o que não é liberal à luz destes 5 momentos evolutivos liberais:

  1. Direitos individuais; liberdades de expressão e de propriedade;
  2. Mercado livre e estado com poderes específicos e limitados;
  3. Direito à educação e ao conhecimento;
  4. Estado protetor e solidário;
  5. Separação de poderes, diversidade e inclusão.

Caracterização sumária dos pseudoliberais:

  • Neoliberais – Os neoliberais tendem a ver o mundo como um mercado global imenso em que a troca lucrativa de bens superioriza-se a outros aspetos da relação entre nações. Usam a racionalidade para maximizar a vantagem económica e isso inspira o modo como as atividade sociais, políticas e culturais devem ocorrer. Ao contrário, ser liberal significa alguém que é um agente individual livre que, em conjugação com outros agentes individuais, está acima de qualquer asserção económica.
    Por vezes, os países que não tiveram uma tradição liberal, como os países do ex-bloco soviético (incluindo a Rússia), tendem a sucumbir o chamamento neoliberal para rapidamente prosperarem economicamente, sem garantirem simultaneamente os direitos humanos, o respeito pelas minorias, a devida proteção social, a independência da justiça, a participação democrática e as liberdades básicas.
  • Mascarados de “Liberais” – Na senda de votos fáceis, adesão da população e o interesse dos investidores, muitos partidos da chamada direita populista gostam de utilizar uma narrativa liberal económica. Vemos isso na Áustria, nos Países Baixos e, mais recentemente, na Argentina. Conciliam uma pressuposta agenda liberal com discurso xenófobo, homofóbico, anti-imigração, anti-sistema de justiça, averso às “elites” e contra supostos inimigos exteriores.
  • Liberalismo Global/ Iliberalismo Nacional – A China é o exemplo mais expressivo de um aproveitamento exemplar da liberdade de investir, comercializar e trocar produtos ao nível global sem assegurar para a sua população níveis elementares de direitos humanos, direitos económicos e determinados padrões básicos de desenvolvimento humano e social. Consegue com isso enormes vantagens competitivas. Mas não é caso único deste tipo de aproveitamento capitalista de países não liberais.
  • Liberalismo Paternalista – Na Europa colonial, muitos países escravizaram, exploraram e perseguiram outros povos no apogeu das conquistas civilizacionais, como a abolição da escravatura, luta pelos direitos da mulheres, lutas pelos direitos de minorias étnicas, LGBT+, etc. Para todos os efeitos deixaram e deixam de ser liberais quando mantêm essas práticas e atitudes paternalistas com países outrora colonizados ou outros.

Francis Fukuyama, investigou e escreveu sobre os descontentes do Liberalismo. Muitas das suas preocupações residem na viabilidade atual do liberalismo assumir-se como forma de governação. Na verdade, há uma tradição histórica nos movimentos liberais de acompanharem as grandes transformações sociais, demográficas e tecnológicas, adicionando novos conceitos aos já existentes na sua base ideológica. Mas a sua apetência para governar e dispor do poder para fazer transformações é de uma tibieza confrangedora.

São mais os outros quadrantes políticos a utilizar o liberalismo do que os próprios liberais. Foram os conservadores que, ao promoverem reformas liberais, se perpetuaram muitos anos na governação do Reino Unido. Foram os marxistas chineses que criaram modelos de governação do tipo “um país, dois sistemas” para dominarem o comércio global. São os neoliberais populistas a demonizar e a assumir a frente no combate ao estado burocrático, incompetente e corrupto. São os governos progressistas a ficarem com os louros do respeito pelas minorias e da implementação das políticas inclusivas.

O portfólio ideológico liberal moderno tem tudo o que é necessário para lidar com os desafios da diversidade, porque aceita a diferença não só de etnia, género, orientação sexual, como também inclui facilmente diferentes religiões, salvaguardando sempre a esfera privada do indivíduo e evitando políticas identitárias de esquerda e de direita.

Por outro lado, são os liberais que lidam melhor as questões relacionadas com a liberdade de expressão, ameaçada hoje em dia pela desinformação, pela interferência de ditaduras e interesses privados, assim como pela fácil manipulação nas plataformas digitais. A liberdade de expressão é algo que está no seu DNA de valores, desde a fundação do liberalismo clássico.

Para terminar, outro princípio liberal que “é o levar o federalismo a sério”, citando Fukuyama, nomeadamente na descentralização do poder para níveis onde a proximidade e a racionalidade podem gerar eficiência acrescida na gestão local dos problemas das pessoas*. O federalismo para um liberal só pode funcionar se houver subsidiariedade sem se perder soberania, onde o poder nos níveis mais baixos de governação reflete melhor as escolhas dos cidadãos e não inviabiliza a utilização solidária de benefícios e de recursos comuns. Isto é válido tanto para os Estados Unidos como para a Europa nos seus formatos federais nacionais, como para potenciais futuros formatos de federalismo comunitário.

O autor deste artigo declara a sua afiliação ao Volt Europa (partido liberal-federalista pan-europeu onde está inserido o Volt Portugal)