O diabo está sempre nos detalhes. É certo e sabido que o quadro geral pode parecer excelente mas que, muitas vezes, olhando-o mais de perto vemos as fissuras que o optimismo disfarça.

Temo que estejamos a viver – mais uma vez, outra vez – um momento destes. Uma daquelas alturas em que celebramos o presente, antevemos um futuro radioso e não queremos sequer saber das notícias menos boas. Mas elas estão aí. Alguns exemplos.

Poucos têm a noção que não é só de turismo que faz o milagre da recuperação económica, menos ainda saberão de que há uma indústria pouco sexy – a metalomecânica – que passou por uma profunda transformação e que, com o seu coração a palpitar naquela metade norte do país quase invisível na imprensa de Lisboa, é hoje responsável por 30% das exportações. É quase tudo pequenas empresas (23 mil que empregam 200 mil trabalhadores), mas só no último mês para que conheço os números (Novembro de 2017) a taxa de crescimento homólogo das exportações foi de 25%. Nada mal no país do foguetório por causa de uma taxa de crescimento da economia de 2,5% ou 2,6%.

Problema: esta indústria precisa de mais 28 mil trabalhadores e não os encontra. Não de lustrosos licenciados, mas de serralheiros, soldadores e operadores de máquinas. Isto é, de profissionais com aquele tipo de qualificação que o nosso sistema de ensino deliberadamente desvaloriza e que este Ministério da Educação proscreveu por razões ideológicas ao reverter medidas do anterior governo que procuravam seguir o exemplo alemão de ensino profissionalizante.

Outro exemplo: o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, gabou-se esta semana numa entrevista ao Expresso de que “estamos a fazer uma reforma importante da Segurança Social, que é diversificar as fontes de financiamento. Já temos duas novas fontes: o adicional do IMI e agora parte da derrama de IRC.” Ou seja, num país onde o gasto com pensões é já de 14% do PIB, bem acima da média de 8,2% da OCDE, o ministro não mostra qualquer preocupação com uma reforma que ajude a conter o crescimento dessa conta, antes se ufana de estar a sobrecarregar a economia com mais impostos.

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Esta questão é tão ou mais importante quando todas as dinâmicas jogam contra nós. Só em 2017 houve mais 24 mil mortes do que nascimentos, um recorde negativo que acentua a crise demográfica de um país que é o sexto mais envelhecido do mundo e o segundo mais envelhecido da União Europeia. As consequências para o futuro são dramáticas: no espaço de uma geração haverá em Portugal apenas uns 8,4 milhões de habitantes, teremos três idosos para cada jovem e a população em idade activa, que em 2011 era de 7 milhões, poderá estar reduzida a 4,6 milhões. Nenhum adicional do IMI sustentará este desequilíbrio demográfico.

Dir-se-á: mas isso é lá para 2051, muita água passará debaixo das pontes. É verdade, mas também é verdade que muita água já passou debaixo das pontes e não a recuperaremos. Esta semana, por exemplo, o primeiro-ministro festejou mais uma descida na taxa de desemprego. Óptimo. Mas se olharmos para os detalhes – o diabo dos detalhes – notaremos que, de acordo com o INE, em Novembro de 2017 havia 4,75 milhões de portugueses empregados. Recuando a Novembro de 2007, antes de o emprego começar a diminuir em 2008, verificamos que isso significa existem hoje em Portugal menos 200 mil empregos. Claro que estamos muito melhor do que no auge da crise, quando se tinham perdido 650 mil empregos, mas a verdade é que mesmo estando com uma taxa de desemprego mais baixa do que há dez anos, só recuperámos 450 mil desses postos de trabalho (curiosidade significativa mas esquecida: cerca de 200 mil foram recuperados ainda com o anterior governo). Se pensarmos que algumas das indústrias mais dinâmicas já estão com dificuldade em encontrar os trabalhadores de que necessitam é fácil deduzir que o potencial de crescimento da economia vai estagnar ou voltar a diminuir.

Dei estes exemplos concretos para fugir à maior aridez dos diagnósticos dos economistas, mas é curioso como, à esquerda e à direita, estes convergem em muitos alertas. De uma forma muito sintética, debaixo do tapete do “milagre orçamental” e do “milagre económico”, subsistem muitos dos problemas que, em momentos anteriores, nos levaram à crise – momentos em que também se vivia numa quase euforia, como no guterrismo dos tempos da Expo 98 (depois viria o “pântano”) e no socratismo anterior à crise internacional de 2008 (depois viria o discurso da “excepção portuguesa” antes do mergulho nos braços da troika). Eis alguns desses problemas:

  • As finanças públicas apresentam bons números mas totalmente dependentes de uma maior receita fiscal impulsionada pelo crescimento, de cortes irracionais nos investimentos e das cativações com reflexo na degradação dos serviços públicos correntes. Em contrapartida, as “reversões” e os novos direitos estão a criar obrigações futuras incomportáveis face a qualquer solavanco no crescimento das receitas fiscais e contributivas. Isto para não falar de uma dívida pública altíssima que pode ser uma bomba-relógio mal oscilem as taxas de juro, hoje a níveis historicamente baixos.
  • A recuperação económica existe mas tem pés de barro, pois o investimento nem sequer consegue repor o capital e as taxas de poupança nunca foram tão baixas. A produtividade tem vindo a baixar uma vez que muitos dos empregos são criados em áreas de salários baixos e pouco valor acrescentado. O regresso de algum consumo voltou a colocar pressão sobre a balança de pagamentos, sendo que o país tem uma dívida externa elevadíssima. A dívida privada também é muito elevada, limita a capacidade das empresas investirem e não ajuda o balanço dos bancos, onde não estão ainda resolvidos todos os problemas.
  • Boa parte do dinheiro que tem ajudado a economia a renascer tem vindo do exterior, mas isso tem-se feito à conta de alienação de património, o que pode ter começado nas privatizações mas continua hoje noutros sectores e no imobiliário, onde um quarto das vendas têm sido a estrangeiros. Pior: o mais recente relatório sobre a presença de capital estrangeiro no nosso país indica que em 2014 (e a situação só pode ter piorado desde então) este já representava 45% do volume de negócios das empresas sem contar com a banca e os seguros, assegurando 21% do emprego. Ou seja, estamos perante o quadro de uma economia dependente.

Claro que, não explodindo uma crise externa, nenhum destes problemas estruturais tira o sono a quem pensa nas eleições de 2019. As coisas continuarão a correr bem, mesmo que nem todos os ventos continuem a ser tão generosos como têm sido até agora. O diabo do detalhe, como sempre no nosso passado recente, é que quando os problemas surgirem estaremos igualmente desprotegidos, pois igualmente endividados, igualmente comprometidos com “direitos adquiridos”, igualmente avessos a reformas e, o que é o lado mais trágico de tudo, estaremos ainda mais envelhecidos e dependentes.

Mas até lá, repito, não se preocupem. O estado de espírito na Europa é de nem sequer querer olhar para os problemas ou espreitar para o que, em Portugal como noutros países, está de novo a ser escondido debaixo do tapete. Basta ver a forma como se celebra a saída da Grécia do seu terceiro resgate para ter a noção clara de que, tal como no passado, a vontade dos líderes europeus é mais de fecharem os olhos do que serem rigorosos. O seu estado de espírito é o mais favorável possível à complacência, à mesma complacência que conhecíamos nos anos pré-crise.

O diabo, repito, está nos detalhes. Mas quem quer saber deles quando o sol brilha e a máxima é aproveitar o dia? Carpe diem…