Cinco minutos. O tique-taque na cabeça dos jogadores do Zaire já só pensava no tempo que restava por jogar. Até que o árbitro vê uma falta à entrada da área. Apita, diz onde é para marcar e ordena aos africanos para formarem uma barreira. Junto à bola, de bigode na cara e mira certeira no pé esquerdo, está Rivelino. Ou seja, perigo iminente. O brasileiro é educado, faz o que lhe compete e espera pela autorização do árbitro para marcar. Ouve-se o apito mas não é Rivelino que remata. Nem qualquer outro brasileiro.

Mal o oficial dá o sinal, um jogador do Zaire sai disparado da barreira, como se o elástico que o prendia se tivesse acabado de romper. É Mwepu Ilunga. Vai direito à bola e chuta-a de qualquer forma, com força e para longe. O árbitro apita de novo. Ilunga abre os braços. Em troca, vê um cartão amarelo. “Um momento bizarro de ignorância africana”, dizia, naqueles segundos, John Motson, comentador televisivo da BBC.

O pontapé livre repete-se mas Rivelino já estava distraído. A bola sai do seu pé e nem perto da baliza passa. O estádio ri-se, o mundo também, e durante anos continuou a ser assim. A chacota do Mundial de 1974 passava a ser o Zaire. Até que os jogadores começaram a falar. “Conhecia as regras bastante bem. Fiz aquilo deliberadamente e o árbitro até foi bastante tolerante e só me deu um cartão amarelo”, contou, em 2002, o tal Mwepu Ilunga.

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Logo aí houve piadas fáceis. Críticas por todo o lado. O gozo era a arma mais à mão. O mundo troçava, mas não podia estar mais enganado.

O Zaire chegara ao Mundial depois de conquistar a Taça das Nações Africanas (CAN), em 1968 e 1974, e após se livrar de três eliminatórias e uma fase de grupos durante a qualificação. Era a primeira vez que um campeonato do mundo tinha um convidado da África subsariana. O próprio Mwepo Ilunga, anos depois, foi eleito para o melhor onze africano do século XX. “Quando nos qualificámos para o Mundial, ele chamou-nos e ofereceu-nos um carro, uma casa e umas férias na Europa a cada um”, recordou o defesa direito à BBC, em 2002, quando já vivia “como um vagabundo” no meio do que hoje se chama República Democrática do Congo.

O ‘ele’, nas suas palavras, é Joseph Mobutu, presidente do Zaire (e do que houve antes e depois) entre 1965 e 1997.

o dinheiro, a ameaça e a promessa que se foi

O final do jogo contra o Brasil era o alívio. O Zaire perdia 3-0, fazia o três em linha em derrotas, acabava com 14 golos sofridos e nenhum marcado. Era esta a fatura que levava para casa. E com isto, os africanos safavam-se. Mas como assim?

Porque podiam regressar em segurança. “Antes do jogo [contra o Brasil], vários guardas do presidente fecharam o nosso hotel, barraram a entrada aos jornalistas e soubemos que, se perdessemos por 4-0, nenhum de nós poderia voltar ao país”, lamentou Ilunga, rebobinando nas recordações para chegar à parte da história onde a pessoa que oferecia carros e casas passou a distribuir medos.

O volta-face deu-se cedo, logo após o primeiro jogo. O desprezo alheio também. “Se não conseguirmos ganhar ao Zaire, mais vale fazermos as malas e irmos para casa”, dizia o selecionador escocês, Willie Ormond, antes do duelo. A conversa resultou e o 2-0 final ficou no lado dos britânicos. Os africanos perdem, mas deixam boa impressão. Robert Kazadi, na baliza, farta-se de voar e defender. Menos aos olhos de Joseph Mobutu. A partida acada e os jogadores ficam a saber que já não receberiam prémios monetário por participarem no Mundial.

É a desilusão. No hotel da equipa estão também dezenas de membros do governo do Zaire, guardas do exército ou amigos do Presidente. Os tais que acusam de terem ficado com o dinheiro que lhes era destinado. “Ficámos sem moral. Ameaçámos não jogar e poderíamos facilmente ter deixado entrar 20 golos”, chega a dizer Mulamba Ndaye, o avançado que, em 1974, é o melhor marcador (nove golos) na caminhada do Zaire até à vitória na CAN.

Os jogadores não fazem greve, mas queixam-se a delegados da FIFA. Para nada. Continuam a queixar-se e dois jogadores até estavam decididos a não jogar. “Tivemos que fazer uns telefonemas para eles jogarem e até a organização do Mundial nos implorou que jogássemos, com medo de que a imagem da prova fosse prejudicada. Para nos acalmarem, até nos ofereceram cerca de 3 mil marcos [hoje cerca de 740 euros]”, contou Tubilandu, guardião suplente da equipa, em 2010, quando um documentário mergulhou na República Democrática do Congo à procura dos sobreviventes de 1974 e do antigo Zaire.

A hora e meia que se segue dá-lhes uma derrota por 9-0. E mais. Após os primeiros três golos, Blagoj Vidinic, o treinador jugoslavo da equipa, troca de guarda-redes. Sai Kazadi, que de desmultiplicara em defesas, entra o tal Tubilandu, que media 1,62 m. Segundos depois, “o pobre coitado tocava pela primeira vez na bola para a ir buscar ao fundo da baliza”, recordaria Kazadi. Ao todo, sofreria seis golos.

O motivo desta substituição não se entende. Muito menos quando Vidinic o esconde como um “assunto de Estado” aos jornalistas e abre a portagem para que passe um rumor – de que o tinha feito para beneficiar a Jugoslávia, seleção do seu país. Nada disso. Anos depois, confessaria que fora um telefonema de Joseph Mobutu a ordená-lo que trocasse de guarda-redes. Assim não se percebe mesmo.

jogar para sobreviver

Só faltava o Brasil, campeões mundiais em título, que precisavam de uma vitória por 3-0 para se qualificarem à frente da Escócia. Para o Zaire, era proibido ir além desse resultado. Ao intervalo, é a vontade dos africanos que reina. Só está 1-0. Por isso, os brasileiros batem à porta. Vão ao balneário dos africanos e pedem-lhes que se acanhem. “Para satisfazer os adeptos, não façam nada. Depois congelem o jogo e isto acaba. Vejam o que conseguem fazer”, disse depois Vidinic à equipa, antes de voltarem ao relvado.

Segunda parte. Os brasileiros conseguem a façanha e marcam mais dois golos. Até que surge o tal livre, a cinco minutos do fim. Rivelino ajeita-se para marcar. Jairzinho também. Ambos querem atirar à baliza. Mwepu Illanga arranca e chuta a bola. Irritado. Desesperado. “Gritei e chamei sacanas [ou algo pior] aos brasileiros, pois não entendiam a pressão a que estávamos sujeitos”, criticou, ao lembrar o ato que distraiu Rivelino e manteve o resultado em 3-0.

Foi isto um exemplo do que hoje se condena como um resultado combinado? Para quem lá esteve, de todo. “Não recebemos nada. Fizemo-lo por prazer. Primeiro, porque os escoceses tinham-nos tratado mal, até nos cuspiram em cima. E depois, tínhamos que os fazer pagar por isso”, assegurou Mafu Kibomge, no documentário “Entre o Mundial e as Eleições”.

E fizeram. Escoceses fora, brasileiros em frente e africanos para o Zaire. Rumo a casa, graças ao 3-0. Ao pontapé desenfreado de Illunga e à distração que bloqueou Rivelino. Deu motivo de chacota. Muita. Hoje, o momento consta em qualquer coleção de funniest moments da história dos Mundiais. Sim, mas 22 homens sobreviveram e conseguiram voltar para casa.