“Tirar a parte de baixo, tudo bem! Então e depois? As mãos são a última coisa a destapar, mas as luvas podem estar contaminadas. E como tiro a máscara, a viseira e os óculos sem me tocar?”. Ana é enfermeira no Hospital de S. José e a formação teórica de meia hora que teve não foi suficiente para a tranquilizar, até porque nunca vestiu nem despiu um equipamento tão específico como o escafandro. Até agora só os hospitais de referência – S. João, no Porto, Curry Cabral e D. Estefânia, em Lisboa – deram formação mais detalhada, com componente prática, a um conjunto específico de profissionais para saberem lidar perante um possível caso de ébola. O diretor geral de saúde, Francisco George, diz que os restantes hospitais não o preocupam.

“Tem havido formações através de simulacros nos hospitais de referência e no INEM e informações pontuais quando precisas. E foram dadas instruções aos hospitais de referência para treinarem as equipas, de modo a ficarem muito bem preparadas”, assegurou ao Observador o diretor geral de saúde, Francisco George, acrescentando que há 37 camas, no S. João e no Curry Cabral preparadas para receber eventuais casos de ébola. Mais 10 na Estefânia.

E em relação aos outros hospitais? “Não me pergunte de outros hospitais. Quando for caso disso damos um alerta geral. Neste momento estamos em crer que não estamos numa fase de preocupação com outros hospitais”, respondeu prontamente o responsável, desvalorizando os receios manifestados pelos profissionais. Desde logo porque, diz Francisco George, vestir e despir os equipamentos de proteção individual “aprende-se nos cursos”. A verdade é que não se aprende. Os enfermeiros contactados pelo Observador dizem que nunca aprenderam tal durante o curso, bem como Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros. Bruno Noronha Gomes, vice-presidente do conselho diretivo da Ordem dos Enfermeiros, sublinha que os enfermeiros não aprendem a utilizar o equipamento durante o curso, a menos que passem pela infecciologia, mas mesmo assim podem nunca chegar a experimentá-lo.

“Não me pergunte de outros hospitais. Quando for caso disso damos um alerta geral. Neste momento estamos em crer que não estamos numa fase de preocupação com outros hospitais”, respondeu Francisco George ao Observador.

E é nesses “outros hospitais”, que, pelo menos para já, não preocupam Francisco George, que aumenta a ansiedade dos profissionais de saúde que até ao momento ainda não receberam qualquer formação ou tiveram, por iniciativa das próprias instituições, apenas uma curta formação teórica sobre a transmissão do vírus e os procedimentos a adotar no reencaminhamento do doente para os hospitais de referência. É esse o caso da enfermeira Ana, nome fictício, que trabalha no S. José, que diz ter muitas dúvidas, “até porque nem nos souberam dizer exatamente qual o risco de contágio indireto, ou seja, através das superfícies”. Ao Observador, Ana disse ainda que os que sentem mais receio são “os colegas da urgência que poderão ficar mais expostos num caso desses”.

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Jorge Atouguia, especialista em doenças infecciosas e medicina tropical, confirmou ao Observador que “as pessoas estão preocupadas nos hospitais que não são de referência. E com razão”. É que se o diretor geral de saúde acredita que os eventuais casos suspeitos, a existirem, se vão dirigir logo aos hospitais de referência, a verdade é que, segundo Jorge Atouguia, “o problema aqui em Portugal são os casos suspeitos e as medidas necessárias para os vários hospitais quando recebem esses casos. A pessoa não escolhe o hospital onde vai. Tenho algum medo que pessoas que venham de algum desses países [Guiné Conacri, Libéria e Nigéria] possam começar a ficar com sintomas e vão a outro hospital que não os de referência”. E por isso mesmo defende que esses “profissionais deviam ter formação”.

“Tenho algum medo que pessoas que venham de algum desses países possam começar a ficar com sintomas e vão a outro hospital que não os de referência”, desabafou Jorge Atouguia, especialista em doenças infecciosas e medicina tropical.

Nos três hospitais de referência também se vive ansiedade

Mas a verdade é que também nos hospitais de referência se vive uma ansiedade crescente. Inclusive entre os profissionais que já receberam formação. José Carlos Martins, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros, revelou que chegaram ao sindicato “manifestações de preocupação por parte de algumas enfermeiras da Estefânia que já tiveram formação mas que perante os desenvolvimentos mais recentes estão preocupadas com a ausência de nova informação na instituição”. O mesmo foi admitido ao Observador por Carlos Lima Alves, responsável pelo controlo de infeção do Hospital S. João: “há algum receio e preocupação, mas esse receio também motiva os profissionais para as formações”.

Carlos Lima Alves contou que desde Abril que tem vindo a ser dada formação aos profissionais, sem avançar quantos profissionais já receberam formação e quantas horas foram dispensadas a este plano de contingência. O objetivo é abranger todos os funcionários que possam vir a contactar com algum caso suspeito. Essa formação passa por formação em sala e uma componente prática, sendo que também tem havido simulacros, explicou o responsável.

Na parte prática os profissionais aprendem sobretudo a vestir e a despir o equipamento de proteção individual e são avaliados. A formação depende muito da “probabilidade que há de o funcionário vir a contactar ou não com casos suspeitos” e por isso os formadores têm ensinado os profissionais a atuar nas várias situações possíveis e consoante os equipamentos que sejam necessários.

 “Temos profissionais que calçam o 46 e outros o 34. E só nos deparámos com isso durante as formações. Nós tínhamos comprado equipamentos para estatura média”, contou Carlos Alves, responsável pelo controlo de infeção do Hospital S. João.

E graças a estas sessões práticas tem sido possível “melhorar o equipamento”, sublinhou Carlos Alves. “Temos profissionais que calçam o 46 e outros o 34. E só nos deparámos com isso durante as formações. Nós tínhamos comprado equipamentos para estatura média”, exemplificou o especialista. Um aspeto bastante importante, uma vez que em Espanha, ao que tudo agora parece indicar, o equipamento da auxiliar de enfermagem que ficou infetada com o ébola era curto.

A dificuldade de despir o equipamento de proteção

Retirar o equipamento “é o ponto mais importante no manuseamento”, atesta Carlos Alves. Mas há regras? “Há, mas não são uniformes”, explicou o responsável do hospital S. João. Vai depender muito do equipamento em questão e por isso tem sido dada formação para todos os equipamentos. Ponto comum é que “deve haver sempre um segundo profissional na colocação e na remoção a ajudar”. E “ter apenas formação teórica dá mau resultado”.

“Este é um procedimento que tem a sua complexidade e é normalmente feito em condições de stress e o fator nervosismo faz com que possa haver uma falha”, admitiu o especialista que acrescenta contudo que “há várias formas de diminuir o risco” e que o hospital “está preparado”. “Não digo mais do que preparado pois a preparação é contínua”, concluiu.

 “Este é um procedimento que tem a sua complexidade e é normalmente feito em condições de stress e o fator nervosismo faz com que possa haver uma falha”, admitiu Carlos Alves.

Jorge Atouguia concorda que é necessária formação para manusear bem o equipamento, mas diz que o risco de algo correr mal é maior nos países africanos, onde o ébola tem atacado fortemente, por causa “do calor e da humidade”. “A ansiedade para tirar aquele equipamento, extremamente desgastante, é tão grande que as pessoas não seguem os procedimentos corretos muitas vezes”.

Também Bruno Gomes, da Ordem dos Enfermeiros, acredita que “nas unidades de infecciologia a falibilidade quase não exista, pois existem antecâmaras, e normalmente estão duas pessoas”.

Os inconvenientes da arquitetura

Os problemas a existirem, ressalva o enfermeiro Bruno Gomes, serão maiores nas urgências, nomeadamente na triagem e em hospitais que não os de referência, uma vez que “os sintomas podem ser interpretados de outra forma”. Por isso “deve-se fazer um investimento acrescido nos profissionais que recebem doentes em primeira linha”, até porque vai começar a época das gripes e “os sintomas podem ser facilmente confundidos”.

Mas pior ainda do que a falta de informação, sublinhou o responsável da Ordem dos Enfermeiros, é o “problema arquitetónico”: “todos os doentes se encaminham para a mesma sala, a de espera das urgências”.

Também Jorge Atouguia mostra “alguma preocupação com a capacidade de alguns hospitais para lidar com estes casos suspeitos porque o isolamento de uma pessoa numa urgência em muitos hospitais pode levar a confusões. Só a questão de se isolar uma pessoa e isolar áreas pode complicar bastante o funcionamento de uma urgência”.