Em 1987 chegou aos Açores o primeiro cidadão português deportado, vindo do Canadá. Desde então, muitos mais portugueses de sangue foram expulsos e condenados pelos Estados Unidos e pelo Canadá a viver num país onde não cresceram e cuja língua nem sequer sabem falar. “É uma dupla pena”, disse ao Observador Nuno Costa Santos, que com Dinarte Branco criou a peça “I Don’t Belong Here”. A estreia acontece esta sexta-feira à noite no Teatro Maria Matos, em Lisboa, mas vai andar em digressão pelo país até ao final de junho.

“I Don’t Belong Here”, ou “não pertenço aqui”, na tradução para português, foi feita a partir das histórias e da experiência dos próprios deportados, pessoas com cidadania portuguesa que cresceram no norte do continente americano, que ali criaram laços familiares, fizeram filhos e amigos. “Depois entraram em zonas de marginalidade, mas cumpriram as respetivas penas de prisão pelos crimes que cometeram. É por isso que a pena de deportação é injusta, porque é uma dupla pena, não faz sentido“, defendeu Nuno Costa Santos, um dos autores do texto.

Do arquipélago dos Açores, no meio do Atlântico, partiram muitos portugueses em busca do sonho americano e canadiano. Em 1987, pela primeira vez um cidadão foi forçado a fazer a viagem inversa. Pena: deportação. Nuno Costa Santos pede para não confundir com repatriamento. “Não gostamos dessa palavra porque eles não voltaram à sua pátria, muitos deles foram para o continente americano com seis ou sete anos de idade”, disse. Até ao início de 2012, “eles” já eram 1175 deportados, de acordo com a Universidade dos Açores. A posse, tráfico e consumo de drogas é o principal crime. A partir dos atentados do 11 de setembro de 2001, às Torres Gémeas, a segurança apertou e as expulsões aumentaram.

“É uma politica a traço grosso, eles não são uma ameaça à segurança nacional. Eles têm uma vida lá!”, defendeu Nuno Costa Santos, que começou a trabalhar com alguns destes deportados nos Açores, no verão de 2013. Entre eles estava um homem que tinha feito parte do exército americano e que até tem uma tatuagem que homenageia esse momento. “Estava convicto de que se tinha tornado americano, mas não foi por isso que não foi expulso ao fim de anos na prisão.”

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“I Don’t Belong Here” tem o lado biográfico dessas pessoas com quem Dinarte Branco e Nuno Costa Santos estabeleceram laços. Parte da biografia foi transformada em objeto artístico, apresentado nos palcos por dois atores, Tiago Nogueira e Cláudia Gaiolas, mas também por cinco deportados. O espetáculo vive de monólogos e da recriação de momentos que eles viveram, como quando foram presentes ao juiz que decretou a deportação. Há outra cena em que alguém foi recebido pela família em São Miguel. “O tom do espetáculo não é só trágico, tem também um lado humorístico porque eles contam o seu percurso de uma forma divertida, sabem contar as suas histórias sem complacência.”

Por haver cinco deportados em palco, os autores tomaram a opção artística de apresentar a peça em inglês. “Eles são americanos e canadianos, é em inglês que eles se expressam naturalmente. Seria artificial transformar o espetáculo em português, mas acho que isso não vai afastar os públicos porque é um inglês simples que toda a gente perceberá”, garantiu Nuno Costa Santos. “A presença deles em palco só por si é comunicação.”  

Quando Dinarte e Nuno apresentaram a ideia aos deportados que conheceram nos Açores, estes “primeiro estranharam e depois entranharam”, contou Nuno Costa Santos. Perceberam que esta peça era importante, passaram por uma seleção e estão prontos a partilhar parte da sua vida em palco. Até já houve uma a antestreia em Montemor-o-Novo, a 19 e 20 de dezembro. O novo desafio transformou-os, deu-lhes um novo alento. “Há lá uma pessoa que diz que morreu na altura em que se despediu dos filhos. Renasceu nos Açores, criou uma nova vida, mas essa dor é permanente em todos os espetáculos.”

“I Don’t Belong Here” fica na sala principal do Teatro Maria Matos até 15 de janeiro, seguindo depois para Torres Novas, Porto, Guimarães, Coimbra, Ovar e Viseu. No final de junho chega aonde tudo começou, os Açores. Nuno Costa Santos explicou que a decisão não foi por acaso. “Isso tem um lado importante para eles, apresentarem na cidade onde vivem aquilo que foram capazes de fazer artisticamente, foram aplaudidos, sentem-se valorizados. A arte aproxima os seres humanos.”