A dor foi intensa, das fortes, como tantas outras. Pudera: o choque, em cheio nas partes baixas, deixara-o estendido no relvado. “Foi intenso, doeu mesmo a sério”, disse, quando lhe pediram para recordar o embate. O jogo seguiu, a bola voltou a rolar e até a tocar-lhe nos pés, mas a dor não o largou. Finda a partida, a cautela mandou-o pegar no telefone, ligar ao médico e marcar uma consulta. Mas tudo estava tranquilo, disseram-lhe: “Não te preocupes, não é nada.” Jonás Gutiérrez confiou e, por isso, seguiu tranquilo e livre de preocupações, como lhe fora dito.

O choque aconteceu a 19 de maio de 2013, antes de a temporada fechar os estádios, ir de férias e, a meio do verão, chamar de volta os jogadores para nova época. Até que a dor, a tal, regressou. “Comecei a sentir mais dores”, lembrou o argentino, desconfiado por, meses depois, uma dor que achava morta estar, de repente, bem viva. “A liga recomeçou, mas, em setembro/outubro, reparei que o testículo começou a inchar e estava inflamado”, revelou, quando o Daily Telegraph lhe pediu para rebobinar a memória. Jonás voltou a preocupar-se e a enfiar-se em consultórios médicos.

Jonás Gutiérrez começou a sentir dores no testículo após um choque com Bacary Sagna, no Newcastle-Arsenal jogado a 19 de maio de 2013

Jonás Gutiérrez começou a sentir dores no testículo após um choque com Bacary Sagna, no Newcastle-Arsenal jogado a 19 de maio de 2013

A dor, misturada com uma sensação de “desconforto”, submeteu-o a um exame de ultrassom, que confirmaria o pior — o argentino, de 30 anos, alto, gadelhudo e barbudo que já andava há mais de quatro anos a jogar no Newcastle, equipa do norte de Inglaterra, tinha um tumor num dos testículos. A novidade, na altura, não foi notícia porque Jonás tudo quis manter em segredo: apenas os pais, o irmão, a irmã, a namorada e “os amigos de toda a vida” o sabiam. E o clube, que pretendia operá-lo logo no dia seguinte ao diagnóstico, em Inglaterra.

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Jonás não o quis. Preferiu atravessar o oceano, retornar a casa, para junto dos seus e lá enfrentar a doença. “O tratamento paguei-o eu, apesar de ter contrato com o Newcastle. O dinheiro não me importava”, garantiu ao Clarín, diário argentino que ouviu da boca de Gutiérrez a história que teria vários baixos antes de começar a ter altos. Após a operação para remover o tumor, o argentino regressou a Inglaterra. Estivera quinze dias fora e queria correr, treinar e esforçar-se para, no futebol, recuperar um lugar que a saúde lhe roubara na equipa do Newcastle.

Mas Alan Pardew tinha outras ideias. À quinta época que Gutiérrez contava no clube, após descer com ele ao Championship (segunda divisão), em 2010, ignorar os assédios, não sair (Jonás estava, nesta altura, acabadinho de vir do Mundial da África do Sul, onde estivera com a seleção argentina) e ajudar o Newcastle a regressar à Premier League, o treinador já não o queria. Jonás nem convocado era.

Até que, um mês após regressar da Argentina, houve uma conversa. “Chamou-me quando eu nunca tinha perguntado o porquê de não jogar. Era titular no clube há cinco, não joguei durante uns meses, por causa de uma doença uma coisa extra futebolística, e a primeira coisa que fez foi virar-me as costas”, criticou o internacional argentino.

A mensagem exibida no estádio do Swansea, dias depois de Jonás anunciar que sofria de um cancro no testículo

A mensagem exibida no estádio do Swansea, dias depois de Jonás anunciar que sofria de um cancro no testículo

Jonás não mais o esqueceu. Ou perdoou. “Teve a oportunidade para se livrar de mim. Mas não era o momento para me tratar assim”, lamentou o argentino que, assim, teve de olhar para fora até largar as malas em Norwich, clube que também habitava na Premier League. O argentino lá foi e, até ao final de 2013/2014, apareceu em quatro jogos, dois como titular. Chegavam as férias, altura de Mundial, este visto em casa, no sofá, de olhos postos na Argentina que, quatro anos antes, contara com ele por obra e escolha de Diego Armando Maradona, então selecionador.

Até que uma consulta de rotina o voltou a amarrar à doença — afinal, o tumor que Gutiérrez tirara do testículo não impedira que o cancro se agarrasse ao seu corpo. “Quando me confirmaram que era cancro fui para casa chorar”, confessou, ao recordar o “primeiro controlo negativo” que o fez mergulhar na quimioterapia. “Não sabes se estás medicado ou a sonhar, às vezes parecia que estavas em outra dimensão. Não estás consciente a cem por cento”, revelou, ao descrever os meses e meses que passou em tratamento. Em que o cabelo longo, que sempre nutrira, lhe começara a cair e, à maioria das perguntas, respondia que assim estava, com ele rapado, por preferência e não por doença.

Assim continuou, ausente, escondido por um Newcastle que, ao público, o dava como lesionado, até setembro de 2014 — quando decidiu, por fim, admitir. “Porque não o disse antes? Não sei, mas sinto que agora, se contar tudo, pode ajudar as pessoas a lutarem e vai ajudar-me a relaxar um pouco”, disse, na altura, ao Olé, ao sublinhar que, na vida, havia que “lutar, pois todas as pedras no caminho são ultrapassáveis”. E eram mesmo.

Jonás Gutiérrez lutou, como lutara logo aos três anos, quando, do nada, ficou com a parte esquerda do corpo paralisada e os seus pais ouviram dos médicos que, para “ficar livre de sequelas, tinha de começar a praticar desporto” e “estimular essa parte” do corpo. Por isso, inscreveram o filho no futebol, que o “torna louco” desde que se lembra e no qual explodiu, “aos 17 ou 18 anos”. O mesmo para o qual, já graúdo, lutava para regressar com a ajuda da família e dos amigos mais chegados. “Um dia estava em minha casa e apareceram os meus amigos, eram 17 e estavam todos carecas. Tinham rapado o cabelo. São uns fenómenos”, chegou a dizer.

O argentino lutou nos bastidores para, em dezembro último, o público sorrir: Jonás regressava a Inglaterra para treinar e, agora sim, ver se o corpo ainda o deixava jogar — e Alan Pardew, o treinador que ainda por lá andava, mas não durante muito mais tempo. O argentino, já com 32 anos, ainda dizia que “nunca o ia perdoar”, embora sublinhasse que, se fosse preciso, era com ele que tornaria a pisar um relvado — “Será com esse treinador e nessa clube”, dizia ao Clarín, um dia antes de o primeiro alto, dos grandes, aparecer nesta história.

Foi a 22 de dezembro que, ainda barbudo, mas com o cabelo curtinho, Jonás Gutiérrez voltou a jogar futebol. Fê-lo sorridente e como capitão da equipa de reservas do Newcastle, com quem cumpriu 82 minutos frente ao West Ham. “Já não estava habituado a sentir isto”, dizia, após subir um dos últimos degraus na escada do regresso, que já estava perto. Porque, volvidos outros dois jogos nas reservas, e após Alan Pardew, em janeiro, se mudar para o Crystal Palace, o argentino era convocado para um encontro da equipa principal. O retorno estava para breve, mas não seria a 28 de fevereiro que Jonás Gutiérrez lhe tocaria. Aí, frente ao Aston Villa, não sairia do banco de suplentes — só o faria nesta quarta-feira, 4 de março.

E logo em Newcastle, no Saint James Park, estádio que durante anos o vira e, agora, aplaudia de cada vez que se ouvia o seu nome. Ou quando, já na segunda parte do jogo frente ao Manchester United, o argentino se colocou em pé e correu para aquecer. Os aplausos repetiam-se e multiplicaram-se quando, aos 65’, Jonás, por fim, regressava. Ter certezas é difícil, mas muito poucas seriam as pessoas, entre as 52 mil do recinto, que não se levantaram da cadeira para, com palmas, reconhecer a luta de Jonás Gutiérrez que, ali, naquele momento, por fim, terminava.

O barbudo correu relvado adentro e, de imediato, Fabricio Coloccini, também argentino, tirou a braçadeira para tornar capitão da equipa o homem que acabara de entrar em campo. Jonás foi para a esquerda da defesa onde, mesmo lento, enferrujado e com lágrimas a entupirem-lhe os olhos, foi correndo e tocando na bola, 333 dias depois da última vez que estivera numa partida oficial de futebol.

Dois minutos depois, traído pelas pernas pesadas, vê um cartão amarelo a sair do bolso do árbitro, após se atrasar na perseguição a Adnan Januzaj e rasteirar o extremo do Manchester United, 12 anos mais novo. “Não estava à espera que fosse tão rápido!”, confessou o argentino, no final, sorridente.

Gutiérrez jogou pouco mais de 25 minutos. Foi aplaudido, quase chorou, foi capitão “nunca [se vai] esquecer da receção” que o estádio lhe deu, como afirmou após o encontro. E agora? Agora é continuar. A treinar, a jogar, a lutar e a ser positivo. “Às vezes encontramos problemas em coisas que são insignificantes. Este foi o jogo mais difícil que me tocou jogar na vida”, confessou. Daqui para a frente, todos os que virão, com uma bola a rolar e relva por pisar, só poderão ser fáceis.

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