Talvez o futebol tenha andado a preparar-se na última década para isto: um Campeonato da Europa sem a especial Holanda. Pobre Rinus Michels, pobre Johan Cruijff, um abraço Marco [Van Basten]. Para compensar, Espanha e Alemanha tentam levar avante os princípios do “Futebol Total”, sempre promovidos pelas passagens de Pep Guardiola nos dois países, enquanto treinador. Quando se vê uma Alemanha a jogar com os laterais a extremos, com falso 9 e com três ou quatro criativos no meio-campo, deixando apenas dois homens a cuidar do território (ainda assim, Khedira e Kroos foram quem mais perigo causou…), está tudo dito. Como grita uma música dos Pearl Jam: It’s evolution, babyyyyy

A Alemanha venceu a Ucrânia (2-0, Mustafi e Schweinsteiger). Sim, normal. Tinham dez campeões do mundo em campo (2014), têm técnica e pedalada que não acaba, têm um jogo sedutor, outras ideias, frescas e ousadas, e, claro, contam com três canecos deste torneio no museu — 1972, 1980 e 1996. Já faz 20 anos da última conquista em Europeus, não é assim tão pouco. Continuemos na história, então: Mustafi fez o golo da vitória, e imitou o que apenas outros quatro defesas alemães haviam feito em fases finais de Campeonatos da Europa: Brehme, Sammer, Lahm e Bender. Mais? Okay, só mais uma: Joachim Low (12 jogos), o selecionador alemão, ultrapassou Berti Vogts (11) como técnico da mannschaft com mais partidos disputados em Europeus.

No futebol costuma dizer-se que quando se tapa de um lado, destapa-se do outro. É a lei da física, faz sentido. Parece óbvio. Se metes mais gente na frente, tens menos gente atrás. E vice-versa. Natural, certo? O desafio aqui é ter defesas que permitam àquela gente subir toda sem retrovisor, tranquilos, convictos que para a frente é que é caminho. Low pediu isso. Só pode, quando mete Kroos, Muller, Gotze, Draxler e Ozil. Aquilo é um caos organizado, ninguém faz piscas, mas também não choca, com uns a aparecer no meio, outros na linha, uns a recuar dois metros para dar linha de passe, outros a arrastar rivais. É-lhes natural, o que assusta. E fascina. Eles tocam e “destocam”, vão e vêm. Vão e não voltam. É um mundo novo, que sobrevive (e bem) sem os bombardeiros de tempos idos: Gerd Müller, Klinsmann e Bierhoff.

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O ideal era ter defesas geniais também, para começar a jogada limpinho, mas não é sempre assim: Boateng esteve às aranhas nos primeiros minutos, com passes longos disparatados. Depois acertou, e até salvou uma bola em cima da linha (depois de um corte… seu). Ao lado do defesa do Bayern Munique estiveram Howedes na direita (jogou na esquerda na final da Copa-2014), Mustafi ao meio e Hector na esquerda. Falta Hummels (lesionado) e Lahm (retirado), sim. Ou Mertsacker (retirado). Bom, também é a evolução…

Aos 5′, o primeiro susto para a Alemanha: Mustafi perdeu a bola (lá está), Yarmolenko aproveitou para a roubar e passar para Konoplyanka, que chutou com muita força. Neuer disse “nein“. Para limpar a imagem, depois de um livre lateral milimétrico de Toni Kroos, Mustafi voou e cabeceou para as redes da baliza de Pyatov, 1-0. O defesa do Valencia estreou-se a marcar pela seleção — um jogador do clube che não marcava num Europeu desde Jordi Alba, em 2012, vs. Itália, conta o Play Maker Stats).

Neuer voltaria a fechar a porta, depois de mais um míssil saído da cabeça de Khacheridi. O homem defende muito. É sereno, joga com os pés, é vaidoso, sabe que é bom. E arrisca (normalmente bem). Haja emoção.

Do outro lado, Pyatov tinha de se preocupar era com as bombas de Kroos e Khedira. Tal como já dissemos, incrível como, supostamente os homens que são os vigilantes daquela gente toda, é que causam desequilíbrio de trás para a frente. Tienen llegada, como gostam de dizer os espanhóis. Chegam à frente, portanto.

O jogo ficou, aqui e ali, mastigado, sem grande interesse. Isto se virmos com o olho grande, à espera de coisas incríveis. Se cerrarmos um bocado os olhos, e alhearmo-nos do que se passa à volta, há pormenores deliciosos que valem a ausência nos jantares dos Santos Populares, em Lisboa, com amigos com chapéus-sardinha. As receções de Ozil, os passes de Kroos, a cultura e disponibilidade de Khedira. Uff, futebol.

A primeira parte foi melhor. A Alemanha foi perdendo o controlo e deixou de fazer o que fez muitas vezes no primeiro tempo: ter mais homens à frente da bola do que atrás dela. Ou seja, foi piscando o olho à solidez defensiva e ao contra-ataque, em vez de entrar em desvarios. Foi assim mesmo que chegaram ao 2-0, depois de um canto para a Ucrânia. E foi desenhado com régua e esquadro. Foi bonito: Ozil recebe na esquerda, enquanto Schweinsteiger fugia pela direita, levantando o braço e contendo-se para não ficar em fora de jogo. A canhota genial do craque do Arsenal bateu na bola, ela obedeceu, voou, acumulou umas milhas, girou sobre si como se estivesse a ver-se ao espelho, e aterrou na bota direita do médio do Manchester United. A finalização é difícil, mas esta gente joga muito à bola, 2-0.

Ponto final em Lille. Os campeões do mundo e os três-vezes-campeões-da-Europa começam com o pé direito. No outro jogo do grupo, a Polónia bateu a Irlanda do Norte, que se limitou a defender. Não foi Lewandowski a resolver, mas ajudou, ao atrair tanta atenção e marcação para ele. Foi Milik que marcou o único golo da partida, depois de um cruzamento de Kuba.