O que é um golo de sonho?

E o que é um sonho?

Faz hoje 31 anos. A 16 Outubro 1985, a RFA perde pela primeira vez em casa na qualificação para o Mundial e Portugal carimba o selo: de Estugarda ao México é um Saltillo. Cortesia Carlos Manuel, autor do magnífico 1-0. Calma, já lá vamos. Antes desse dia 16, Portugal tem uma prova de fogo com Malta. À partida, é um jogo a feijões. Acontece precisamente o contrário. Na tarde de 12 outubro, na Luz, a inépcia dos malteses contagia os portugueses, como se constata no golo de Frederico na própria baliza. O importante é ganhar para continuar a pensar no Mundial-86 e Portugal só consegue os desejados dois pontos a oito minutos do fim, quando Gomes aproveita uma saída extemporânea do guarda-redes maltês e finaliza como deve ser (3-2). Na conferência de imprensa, o selecionador José Torres solta a célebre frase: “Matematicamente, a qualificação ainda é possível, embora só um milagre nos levará ao México. Mas deixem-me sonhar. Deixem-me, ao menos, sonhar mais um pouco.” Muito bem, de acordo. Vamos sonhar. Vamos sonhar que hoje é 16 outubro 1985. O grupo 2 de qualificação para o Mundial do México apresenta dois jogos decisivos: em Praga, há o Checoslováquia-Suécia às 16h00, transmitido em directo na RTP2; às 19h00, em Estugarda, o RFA-Portugal dá na RTP 1.

Já sem hipóteses de qualificação, a Checoslováquia (sete pontos e menos um jogo, na RFA) lembra-se de vencer a Suécia (sete pontos, menos um jogo, em Malta) por 2-1. Os suecos, favoritos, marcam primeiro por Corneliusson (6′). Os checos reagem e atiram duas vezes ao poste, por Lauda e Hasek. Perto do intervalo (42′), aparece o 1-1 de Vizek. Seria também ele o autor do 2-1, aos 69′, numa falha do guarda-redes Ravelli. Nessa equipa sueca, há um benfiquista no onze. Chama-se Stromberg. “Ainda hoje, aquele golo do Carlos Manuel me provoca uma ingestão.” Ora bem, com este 2-1 em Praga, o jogo de Estugarda passa a concitar as atenções gerais. E agora? Reforça-se a ideia: se Portugal ganhar, faz 10 pontos e o México é nosso. Seria uma proeza inédita, a de juntar um Mundial ao Euro (1984, 1986). Nem os Magriços de 1966 se lembram disso.

José Torres elege o onze com três benfiquistas, três sportinguistas, três portistas, um boavisteiro e um belenense. Um visionário: junta os cinco campeões nacionais antes de tempo (o Boavista só vence o campeonato em 2001). Na baliza, Bento (Benfica). A libero, o estreante José António (Belenenses). O quarteto defensivo reúne João Pinto (Porto), Frederico (Boavista), Venâncio (Sporting) e Inácio (Porto). No meio, Veloso (Benfica) a trinco. A descer pela direita, a surpresa Mário Jorge (Sporting). A descer pela esquerda, Jaime Pacheco (Sporting). A descer pelo meio, Carlos Manuel (Benfica). Sozinho na frente, entre aqueles alemães todos, Gomes (Porto). No banco, Damas (Sporting), Álvaro (Benfica), Jaime (Belenenses), Litos (Sporting) e José Rafael (Boavista). No ecrã do Neckerstadion, onde o Benfica perderia a final da Taça dos Campeões para o PSV em 1988, a seleção nacional está representada por ordem numérica, só com apelidos. Agora, adivinhem quem é quem: 1 Bento, 2 Pinto, 3 Inácio, 4 Venâncio, 5 Rosa, 6 Santos, 7 Bargiela, 8 Veloso, 9 Gomes, 10 Pacheco e 11 Fernandes.

Já qualificada (11 pontos e menos um jogo), a RFA continua invicta em casa nas fases de apuramento para os Mundiais, entre 36 vitórias e quatro empates. É um registo sensacional, só ao alcance dos grandes. Franz Beckenbauer não convoca Völler nem Magath para evitar sobrecarga de jogos (o que é notável, em Outubro) Quer isso dizer o quê? Nada, absolutamente nada. “Vamos jogar com os melhores. Portugal é perigoso e estamos atentos. Não queremos perder nem a brincar.” Como joga então? Schumacher; Jakobs; Berthold, Förster, Briegel e Brehme; Herget, Meier e Allgöwer; Littbarski e Rummenigge. Sete destes calmeirões jogariam a final do Mundial-86, perdida para a Argentina de Brown, Valdano, Burruchaga e, vá, Maradona.

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A primeira parte é interessante, com Portugal a criar a primeira ocasião de golo num não-desvio de Veloso à boca da baliza, deixada aberta por Schumacher. Seria ele, aliás, o primeiro actor da jogada do golo, aos 55’. Schumacher agarra uma bola fácil e cede-a para Förster. Este lateraliza para Littbarski. A combinação com o n.o 10 Meier não resulta por culpa da pressão de Jaime Pacheco. A bola ressalta para Carlos Manuel. O homem recebe a bola com o pé direito e avança por ali fora. Um, dois, três (passa o meio-campo), quatro, cinco, seis, sete, oito (dribla Meier, esse mesmo o 10 da bola perdida lá atrás) e nove toques. A bola sai do pé direito com uma força e colocação admiráveis. Schumacher esboça uma reação, tão-só isso. Acompanha a bola com os olhos. “Nem a vi. Foi um remate feliz, e inesperado. A bola entrou na gaveta.”

Até final, a RFA carrega e de que maneira. Bento evita dois golos com defesas plásticas e ainda vê a bola bater duas vezes na trave, por Briegel (80′) e Meier (87′). Neste aparato dentro da área nacional, há um contra-ataque aos 90-e-pouco a possibilitar o 2-0, só que Inácio e José Rafael falham a emenda. A alegria que se segue ao apito final do inglês Keith Hackett será recordada para todo o sempre. O banco português salta como uma mola e toda a gente entra em campo aos pulos, aos abraços, aos encontrões. No outro lado, Beckenbauer é um homem inconsolável e esquiva-se à imprensa colocada à boca do túnel de acesso ao balneário. A atitude vale-lhe uma reprimenda por escrito da federação alemã. Por falar nisso, dos escritos, aqui seguem uns quantos desde Portugal na ressaca do 1-0. Ramalho Eanes, então Presidente da República: “Quero felicitar-vos pelo comportamento brioso que alardearam no encontro com a RFA. Felicidades para o México, onde se espera e deseja comportamento idêntico dos selecionados de Portugal.” Errrrrrr. Adiante. Mário Soares, Primeiro-Ministro: “Estou emocionado com esta brilhante vitória da seleção. Não quero deixar de felicitar os técnicos e jogadores que conquistaram o direito de representar Portugal no Mundial, facto que não acontecia desde 1966”.

Carlos Manuel, claro, é o homem do momento. “Esse golo de Estugarda faz parte da memória de muita gente. Ainda hoje as pessoas da minha terra [Moita] me falam dele porque o viveram lá mesmo, no estádio, e depois foram ter comigo ao hotel.” É o seu melhor golo? “Tenho um outro, sabes? E nunca mais o vi, só no “Domingo Desportivo” daquele dia [4 Maio 1980]. Meias-finais da Taça, na Póvoa.” “Uma jogada a três toques entre Bento, Toni e eu. É um contra-ataque, porque apanhámos o Varzim todo lá na frente. Na bola do Toni, chego mais cedo que o guarda-redes por menos de um segundo e adianto a bola. Quando esta vai a sair pela linha de fundo, reparo pelo canto do olho que qualquer companheiro meu está longe de mais para fazer o golo, então foi de trivela. A bola entrou muito devagar e ficou pouco depois da linha de golo. A corrida foi tal que ainda bati no muro. Quero esse golo.” Pré-histórico em relação ao de Estugarda.