“Delírio em Las Vedras”

É duro ser jornalista de cultura em Portugal num canal de televisão de referência, quando até aí já manda a ditadura das audiências. Que o diga Ermelindo, digno e veterano nome do estatal TV Cultura, enviado em reportagem ao Carnaval de Torres Vedras e forçado a vestir-se de matrafona, em nome da captação de espectadores. Interpretado pelo falecido Nuno Melo no seu último papel no cinema, Ermelindo é um dos vários jornalistas de televisões fictícias de todo o jaez, desde a “rebelde” e “transgressora” TV Gosme até ao inevitável canal de “famosos”, que pululam em “Delírio em Las Vedras”, o surreal, gozão e caleidoscópico, documentário ficcionalizado de Edgar Pêra rodado em 3D (também há uma versão em 2D) sobre a edição de 2015 do “Carnaval mais português de Portugal”. As televisões, com os seus “directos”– verbos de encher, redundantes e imbecilóides, à cata de audiências custe o que custar, levam pancada rija em “Delírio em Las Vedras”, naquela que é uma anárquica e jubilatória encenação satírica incrustada na encenação maior do Carnaval de Torres, e que o realizador nunca deixa de testemunhar e documentar simultaneamente com o “enredo” tele-pândego. É de mais delírios destes que o ainda demasiadamente sisudo cinema português está necessitado.

“El Dorado XXI”

O contraste entre o título do novo documentário da portuguesa Saolmé Lamas e a realidade que desvenda é de uma ironia abissal. A autora de “Terra de Ninguém” deslocou-se aos confins dos Andes peruanos, onde esteve mais de um mês a filmar a comunidade mineira de La Rinconada y Cerro Lunar, a localidade mais alta do mundo. Ali, milhares de pessoas procuram ouro, ou contentam-se em garimpar minerais menos nobres e valiosos, em condições de vida, climatéricas, de segurança, laborais e de legalidade aterradoras, num regime de vale-tudo que se estende à sobrevivência quotidiana. Ao contrário do farto, luminoso e feérico El Dorado da lenda, este é gelado, feio, agreste, perigoso e não oferece garantias de que todos o deixarão com os bolsos cheios. “El Dorado XXI” é uma obra na linha dos documentários de um Werner Herzog ou um Wang Bing rodados em locais remotos do planeta, onde há seres humanos a experimentar situações de existência ou de trabalho extremas, mesmo no limite da sobrevivência e da capacidade física e mental para as tolerar. Dois reparos apenas, para a duração excessiva e desnecessária do plano fixo inicial — percebe-se a intenção da realizadora com aquele vai-vem contínuo ao fim de 5 minutos — ; e para a falta de alguma informação básica que nos situe naquela brutal realidade.

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“Jackie”

Autor de filmes “engajados”, puxados para a esquerda e passados em universos masculinos, como “Tony Manero” ou “O Clube”, o chileno Pablo Larrín foi aos EUA filmar Jacqueline Kennedy (interpretada por Natalie Portman) nos dias após o assassinato do presidente Kennedy em Dallas e o seu funeral, quando deu uma entrevista exclusiva ao jornalista e historiador Theodore H. White, da “Life”, na qual fez a famosa associação dos anos da presidência do marido à lendária Camelot do rei Artur . Larraín esmera-se na recriação, com recurso ocasional a imagens de arquivo, de situações várias da vida do casal Kennedy, da presidência de John F. Kennedy e da actividade de Jackie na Casa Branca (caso da célebre iniciativa em que abriu as portas desta à televisão, para uma longa visita guiada), e que culmina na ainda hoje muito mal explicada tragédia de Dallas, no funeral de Estado e nos preparativos para abandonar o edifício, com a entrada em funções do novo presidente, Lyndon B. Johnson. Temos assim uma Jacqueline Kennedy devastada, mas também a tratar cuidadosamente da imagem do falecido marido para a posteridade, e da sua própria iconografia de viúva de John F. Kennedy – a fazer História, portanto. “Jackie” foi escolhido como filme da semana pelo Observador, e pode ler a crítica aqui.