Eles estão por todo o lado mas raramente passam despercebidos. Seja pela cor, pelo look de quem os calça, seja pela aura de liberdade e carisma que emprestam a quaisquer pés. Como um verdadeiro ícone que são, transportam qualquer coisa de religioso, que só os verdadeiros crentes podem testemunhar.

2017 marca o momento em que as lendárias sapatilhas All Star entram no segundo século de vida. Nasceram no ano da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique, no ano em que Francis Picabia inicia o Dadaísmo e que Marcel Duchamp muda a história da arte com o seu “Fontain” mais conhecido como ‘urinol’, no ano em que nascem Ella Fitzgerald e John Lee Hoocker. Nestes tempos de transformação estavam destinados a ser mais que uma mercadoria produzida pela Converse Rubber Shoe Company, especializada em fazer galochas e outro calçado de borracha, no Massachusets, EUA. Estavam destinados a ser um objeto artístico, um dos triunfos do design do século XX.

Primeiro modelo All Star produzido pela Converse Rubber Shoe Company, em 1917.

Na verdade, Marquis Mills Converse, o dono da fábrica, queria lançar-se no nascente mercado do desporto, em especial do basquetebol, e para isso criou um sapato em formato bota feito de lona e dois tipos de borracha vulcanizada — que, supostamente, protegia os tornozelos e seria o mais adequado para os atletas — e chamou-lhe All Star. O modelo era castanho com a sola preta e desde logo conquistou admiradores. Um deles, Chuck Taylor, era ainda um estudante que jogava basquete no liceu quando comprou o seu primeiro par, em 1918. Foi uma paixão que se tornou lendária, pois em 1921, recém-formado, vai bater à porta dos escritórios da companhia de Converse, declara a sua paixão e é contratado como vendedor da marca.

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Reza a história que o carismático Chuck se lançou pela América numa verdadeira campanha de evangelização, arrebanhando fiéis em liceus, universidades, centros de treino e campos de jogos. Ao fim de alguns anos a religião já tinha seguidores em todas as equipas de basquete, aspirantes e treinadores. Além de vender as sapatilhas, Chuck sugeriu a introdução de alguns detalhes, como o reforço de pano na parte de trás do tornozelo. Em 1932 o milagre foi reconhecido e a empresa homenageia Chuck Taylor colocando nos ténis o logótipo com a sua assinatura. Um gesto meramente simbólico pois o antigo atleta nunca terá ganho um cêntimo pelo uso do seu nome, mas não consta que se tivesse importado. Quando morreu, em 1968, tinha pago a fatura da imortalidade.

O carismático embaixador e “evangelizador” da marca: Chuck Taylor com as míticas sapatilhas calçadas.

Triunfo da conjugação do design, utilidade e conforto, as sapatilhas são também um fenómeno de resistência a um tempo feito pelo desejo constante de mudança. E, apesar da sua aura libertária e rebelde, são o exemplo de um objeto conservador. Praticamente até à década de 60 havia apenas dois modelos, um todo preto e outro todo branco, criado em 1936, para a seleção de basquete americana estrear a modalidade nos Jogos Olímpicos de Munique onde arrebatou a medalha de ouro, acrescentando aos “Chuck” a aura da vitória. Em 1939 os soldados americanos que vinham combater na Segunda Guerra Mundial usavam-nos para treino e nos anos 40, com apenas duas cores, a marca dominava 80% do mercado de sapatos desportivos. Os ténis passaram a ser usados noutras modalidades e adotados pelos cidadãos comuns ansiosos por imitarem os seus ídolos. Só em 1957 surge o modelo Oxford ou sapato e na década de 60 começam a ser feitos em sete cores diferentes a pedido das equipas de basquete que queriam cores condizentes com os seus uniformes.

Dos campos desportivos americanos às ruas do mundo inteiro

É precisamente na política e socialmente conturbada década de 60 que os Converse transpõem uma nova fronteira da sua história: começam a ser usados por uma juventude em rebelião, por grupos sociais em plena luta pelos direitos civis, como os negros e as mulheres, e também pelas estrelas do mundo das artes que, de alguma forma, partilhavam certos ideais e utopias com estes grupos. Foram músicos como Elvis Presley, atores como James Dean e Steve McQueen, artistas como Andy Warhol, Michel Basquiat e até presidentes como John F. Kennedy que ajudaram a criar um culto que fez deles um objeto-símbolo da contra cultura. Nos anos 70 o movimento punk fez deles um statement e os ténis passaram dos pés dos Sex Pistols aos das bandas de glam rock como os Blondie. Esta euforia anunciava porém um tempo de declínio: no final da década de 70, as novas tecnologias permitiram criar ténis insuflados e nascia uma nova ordem nos campos de basquete — ao comando estavam agora os Air Jordan, da Nike.

Seleção de basquetebol americana, que estreou a modalidade nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1936, a calçar uns Chuck modelo branco feitos especialmente para a ocasião.

Apesar desta quebra brutal, a marca procurou reconverter-se apostando em definitivo na streetwear e tendo sempre como alvo os movimentos marginais dentro das artes e os consumidores universitários e intelectuais. Nessa altura passa a apostar também no mercado feminino. Mas os anos 80 não foram fáceis, com a concorrência cada vez maior de marcas como a Adidas, a Nike, a New Balance, a Reebook e a moda do jogging e da aeróbica que puseram nos tops os ténis bota insuflados, futuristas.

Apesar de, como em todas as religiões, os Chuck Taylor terem sempre mantido um vasto número de fiéis, a sua silhueta simples e quase austera não combinava com o excesso típico dos anos 80. Ainda assim, o cinema não deixou de os representar em personagens inesquecíveis como Marty McFly da trilogia Regresso ao Futuro e em filmes como Os Marginais (1983) e Clube dos Poetas Mortos (1989).

Mas se a mitológica fénix renasceu, também renasceram os All Star para terem a sua apoteose na década de 90, com o movimento grunge, por um lado, e as páginas da Vogue por outro. Designers de moda como Calvin Klein renderam-se à formula infalível “jeans + Converse = estilo”. E Kurt Cobain afirmava que os usava porque eles eram o que melhor combinava com calças rasgadas e cabelos oleosos. As raparigas mais ousadas faziam por juntá-los com meias pretas e vestidos-lingerie e ter uns All Star tornou-se obrigatório para qualquer adolescente ocidental. Eles estavam nas séries de televisão que todos viam como Melrose Place, Friends ou Seinfeld, estavam nos pés de Madonna, Bruce Springsteen e todos os que eram cool, com mais ou menos dinheiro. Afirmavam a sua transversalidade geracional e social. O seu preço nunca foi um fronteira, difícil foi acompanhar todas as variantes, modelos, homenagens que passaram a ser feitos na lona simples das sapatilhas. A sua magnífica simplicidade tornava-os um espelho apto a refletir qualquer tendência de moda e uma tela capaz de absorver qualquer imagem sem lhes mudar o perfil.

“Come as you are”, o hino dos anos 90 de Kurt Cobain, podia ser um repto dos próprios All Star, sempre a sugerirem que não devemos ser diferentes da maioria. © www.chucksconnection.com

No inicio do milénio a marca declara falência e, em 2003, é comprada pela Nike. Os ténis ícone da América passam a ser feitos na China e no sudoeste asiático e continuam a adaptar-se às tendências da moda. O contraste básico borracha/lona passa a ter versões em pele, pêlo e custumizações com materiais vários desde pérolas a franjas, passando por lantejoulas.

Em 2015 a Nike lançou os Chuck Taylor II, um modelo semelhante mas com algumas novidades nos materiais e no interior do sapato, o que não terá agradado à legião de fiéis da marca nem aos cultores da moda vintage. O que agradou mesmo foi a coleção 70’s , que ia aos arquivos e trazia diretamente dos anos 70 os amarelos mostarda e as bandanas com um carimbo onde se podia escrever o nome do jogador (neste caso do utilizador).

Os All Star mudaram: descubra as diferenças

Certo, certo é que os velhinhos Chuck mostram que a juventude não tem idade e lançam-se no seu segundo século de vida com todas as celebridades e anónimos rendidos ao seu charme intemporal. Desde 2008 que a marca está a recuperar terreno e o atual revivalismo dos anos 90 só pode ajudar. Cem anos depois os Converse All Star deixaram de ser uns ténis e passaram a ser um estilo de vida.